Como Portugal se tornou um país menos seguro #2

A pedido de várias famílias, faço um bis, desta vez foçando nos relatórios das polícias portuguesas. E tenho (de novo) más notícias para os demagogos securitários: não só a criminalidade participada desceu nos últimos 20 anos, como a violenta “afundou” 21% na última década. Gritem menos e estudem mais, vá.
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Na semana passada, fiz algo que há muito planeava: examinar os critérios do Global Peace Index (GPI, ou Índice Global da Paz). É  uma mania minha, investigar este tipo de classificações que anualmente são noticiadas na base de “Portugal desceu”; “Portugal subiu”; “Portugal está mais seguro”; “Portugal está menos seguro”. Confesso que me diverti muito com as conclusões, desde logo porque, para a maioria, serão contra-intuitivas. Mas também me dispuseram bem algumas invectivas de quem me acusava de “pegar” num índice “que mede a paz” para “medir a segurança”: que graça teria usar a ironia se toda a gente percebesse?

Naturalmente, não estava em causa no meu texto “medir a segurança”, ou sequer a paz, mas apenas expor a forma como o GPI é calculado. Aliás, se me perguntarem o que acho do GPI, e do facto de dele se retirar que a paz se assegura com o menor número de armas possível, terei de responder que quaisquer ilusões que uma europeia como eu tivesse sobre isso foram perdidas no dia 24 de fevereiro de 2022, quando vi a Ucrânia, que se comprometeu em 1994 a entregar todo o seu armamento nuclear à Federação Russa em troca da promessa solene de paz, a lutar pela vida e dei por mim a congratular-me por haver deste lado da Europa dois países com as malfadadas bombas nucleares (porque, lá está, há muito que acho que a Europa não deve depender dos EUA para se defender). 

Mas deixemos isso: é sobre segurança, não no sentido holístico mas naquele que a maioria dá à palavra, e que tem a ver com a ideia de haver mais ou menos crime, que me proponho falar, com base em indicadores banais e acessíveis a todos: os relatórios de segurança interna (à falta dos chamados “inquéritos de vitimação”, que permitem aferir da criminalidade não participada - as “cifras negras”).

Também no que respeita a estes relatórios o jornalismo tende a ter uma paixão com o sobe e desce, quando se sabe que em termos de tendências sociais as coisas se avaliam em períodos de décadas (pelo menos), e que é risível por exemplo apresentar como “subida” um incremento do crime participado no ano seguinte a um período pandémico no qual grande parte da população esteve em confinamento.

Sobretudo fruto da cada vez maior falta de meios, tempo e condições de trabalho dos jornalistas, essa “paixão” pelas pequenas ou grandes variações anuais de fenómenos complexos é muito atraente para quem se alimenta de fogachos e vive da demagogia, dos “sentimentos” e “percepções”.

Em março de 2008, a propósito de uma série de mortes violentas em poucos dias e da inevitável enxurrada de “o país está muito mais inseguro”, escrevi neste espaço sobre a evolução do número de homicídios em Portugal (para concluir que nos anteriores 14 anos se verificara uma descida considerável) e sobre como a evolução do sentimento de insegurança é - mais um facto contra-intuitivo - diretamente proporcional ao nível de segurança da sociedade. Não sou eu a dizê-lo, é uma das sumidades nacionais em termos de estudo da violência, o sociólogo Nelson Lourenço: "Quanto menos violenta é uma sociedade, mais percepciona a violência e mais reage a ela”.

Basta, de resto, olhar para a evolução do catálogo de crimes tipificados no Código Penal: dezenas deles surgiram nas últimas décadas, significando que comportamentos que antes não eram sequer puníveis, ou eram-no de forma mitigada e desleixada, passaram a ser investigados e são hoje considerados de investigação prioritária. Caso da violência doméstica, que só é crime autonomizado com esse nome desde 2007, e do abuso sexual de menores, que nessa denominação entrou no Código Penal em 1995. No primeiro Código Penal da democracia (1982), a “cópula ou ato análogo com menor de 12 anos” estava “dentro” do crime de violação (crime que, já agora, só podia ser perpetrado contra uma mulher). E havia, segundo este documento legal, “mulheres menores de 14 anos”, como se depreende da frase “cópula ou ato análogo com mulher menor de 14” (a qual, anote-se, tinha pena inferior à que resultava da violação de uma mulher “maior”). É todo um outro mundo, não é?

Mas vamos lá aos dados da criminalidade participada e à sua evolução, antes que gaste o espaço todo do texto em intróito. Segundo o último relatório de segurança interna/RASI (relativo a 2023), se desde 2014 se notava uma estabilização no número de participações, verificou-se agora um aumento, com um total de 371 995. Talvez seja no entanto interessante constatar que em 2013 tinham sido 368 452 e em 2012, 395 827.

Se recuarmos mais, encontramos números bem superiores: em 2011, houve 405 288 queixas de crimes às polícias; em 2010, 413 600; em 2009, 416 058; em 2008, 421 037. A não ter existido alteração de relevo na metodologia, no quarto de século que medeia entre 1998 e 2023, 2008 é o ano com maior número de participações criminais, um facto que o RASI respetivo atribui à autonomização e “reforço investigativo” do crime de violência doméstica. Nos quatro anos anteriores, o número de participações esteve sempre acima daquele que é referido para 2023: em 2007, 391 611; em 2006, 391 085; em 2005, 388 253; em 2004, 405 605; em 2003, 409 509. 

Assim, olhando para as duas últimas décadas, e tomando como medida da “insegurança” o total da criminalidade participada, teremos de concluir que Portugal se tornou mais seguro. Mas se calhar estes números de mercearia, tão do agrado de quem sabemos, não nos dizem muito.

Teremos de olhar com mais atenção para os crimes que sobem e descem. Perceber se há uns que sobem porque antes não existiam - por exemplo no capítulo dos contra a auto-determinação sexual houve tipos criminais novos, como a importunação sexual (criado em 2007 e atualizado em 2015, tem tido reportes anuais crescentes; só entre 2016 e 2019 houve um acréscimo de 30,7%, de 733 para 958, no número de inquéritos) - ou porque as suas vítimas estão mais empoderadas e existe mais consciência na sociedade, e até nas forças policiais, em relação a eles (poderá ser o caso da violação e da violência doméstica). E se há crimes que descem porque efetivamente são menos comuns ou porque as pessoas acham que não vale a pena apresentar queixa.

No RASI de 2023, o crime cuja participação aumenta mais face a 2022 é “outras burlas”, seguido de “abuso de cartão de garantia ou crédito”. 

"Outras burlas" é também, no mesmo ano, e em contabilidade geral, o crime com mais participações (27 402), seguido da nossa velha conhecida violência doméstica (26 041). O terceiro é “condução de veículo sob efeito do álcool” (24 133); em quarto surge outro crime violento, no entanto de pouca gravidade (tem pena até três anos e depende de queixa): “ofensa à integridade física voluntária simples” (24 111).

Entre os 16 crimes mais numerosos (com mais queixas) em 2023, correspondendo a 67% da criminalidade participada no ano, o único que implica violência contra pessoas, além dos já referidos violência doméstica e ofensa à integridade física, é “ameaça e coação” (16 676). Tudo o resto são crimes contra o património (furtos e burlas) e crimes de “perigo abstrato” como conduzir sem carta (15 579) e tráfico de droga (7550).

De referir que as diversas formas de furto, sempre entre os crimes mais numerosos (em 2023 corresponderam a quase um quarto das participações), estão em notória trajetória descendente desde 2014 - quando foram contabilizados, agregando todos os tipos deste crime, mais de 139 mil, face aos 91 117 de 2023. É no entanto um delito em que pode haver muita vitimação não reportada.

Por outro lado, e ao contrário do que se tem proclamado - e uma certa declaração ao país poderá ter dado a entender - a criminalidade violenta e grave (na qual se inclui o homicídio, a violação, as ofensas à integridade física graves, o sequestro, assaltos a bancos, comércios e residências, roubos de veículos, etc) está, como demonstra o gráfico na página 39 do RASI2023, em sustentada queda desde 2014. Nesse ano, o número de crimes assim catalogados alcançou 19 088, descendo sempre até 2018 (13 981), com uma ligeira subida em 2019 (14 298), afundando na pandemia (12 469 e 11 614) e “recuperando” em 2022 e 2023 (13 281 e 14 022) sem no entanto abandonar a curva descendente da década. Assim, entre 2014 e 2023 observou-se uma quebra de 21%, ou seja, ligeiramente superior a um quinto.

Portanto, amigos, lamento, mas Portugal não só é um país seguro como parece estar bem mais seguro do já foi. Isto segundo as polícias, que é suposto saberem do que falam. Se calhar, para a próxima vez que o primeiro-ministro quiser fazer declarações sobre segurança ao país, é ficar ele a fazer de jarra e dar o palco a quem sabe. 

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