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"O Bêbado". Há sobriedade nesta escuridão setubalense

Um filme de suspense em Setúbal com máfia de leste e tráfico de mulheres. Mas 'O Bêbado', de André Marques, é mais do que isso. Uma boa primeira obra mesmo com alguns contratempos de principiante. Veio do Festival Caminhos do Cinema Português de Coimbra com um prémio da crítica da FIPRESCI, a federação dos críticos.
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Parece sabotagem a forma como este filme está a ser lançado às escondidas. É com lançamentos destes que semanalmente temos o tal despique de cinema português a lutar pelo título do flop do ano. Sente-se uma invisibilidade insuportável - é como se não existisse: não há cartazes nas ruas, o realizador não vai às televisões, os jornalistas nem percebem da importância do visionamento e não se sente que exista uma campanha. Zero e mais zero (nem uma antestreia em Lisboa), por muito que se venha a dizer que aqui não há caras conhecidas. É por estas e por outras que cada vez mais é urgente repensar a ideia da estreia comercial para o cinema de autor português. E, neste caso, é o público quem sofre: O Bêbado arrisca-se a ser a grande surpresa do cinema português recente, precisamente a chegar quando há uma euforia generalizada em torno do prémio de Miguel Gomes em Cannes, com a grande quantidade e qualidade de longas no Indielisboa e pela aproximação de dois filmes bem recomendáveis: Manga d’Terra, de Basil da Cunha e O Teu Rosto será o Último, de Luís Filipe Rocha. Ironia malvada... 

Surpresa mas non troppo...

Se há pouco escrevia surpresa era apenas porque o nome do realizador é desconhecido para todos os que não frequentam o circuito dos curtas nos festivais. André Marques aí tem obra e é um dos realizadores nacionais que, com formação na Roménia, criou um universo próprio, algures entre uma liberdade de movimentos contagiante e um questionamento das formas, coisas que, aliás, são bem visíveis nesta primeira obra.

Uma tragédia setubalense com noite, noite escura. Poucos diálogos e entrada funesta numa antecâmara de dor e sofrimento numa história sobre tráfico de mulheres. Assim à partida, é sinopse para afastar o chamado espectador do shopping, mas Marques, também ele setubalense, filma um universo de álcool e miséria humana com um cinema que toca o coração de um outro tipo de espectador, aquele que tem coragem de sentir o mal do mundo, neste caso com uma potência dramática que é rigorosa. Uma câmara que filma a sério uma cidade, dos bares manhosos de um bas-fond triste a ruas despidas e reais. 

Balada de anjos

O bêbado do título é um trintão desempregado que caiu nas malhas da dependência ao álcool. Sentimos que o seu coração ainda bate mesmo mergulhado no inferno, seja na relação com a mãe, seja quando descobre uma rapariga a fugir da máfia dos tráficos humanos. É aí que este conto fica mais uma balada sobre anjos. Com acasos, fintas do destino e uma firme descaída a aceitar os princípios da decência humana.

O Bêbado pode ser também recomendado a quem acredita mesmo nesta crença do cinema português. Cinema português do qual brota uma hipótese de uma segurança de estilo que parece emprestada ao cinema romeno mais áspero. Estas fusões boas nunca dão ressaca.

Já agora, que se saiba, ninguém cá filma uma perseguição de automóveis com um suspense tão conseguido, nem cenas de abuso sexual tão sufocantes. André Marques entrou no mapa dos cineastas portugueses sem lobbie que importam ficar sob vigia cinéfila.

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