Ordem de Moedas põe polícias municipais em risco de serem acusados de abuso de poder ou sequestro
Reinaldo Rodrigues / Global Imagens

Ordem de Moedas põe polícias municipais em risco de serem acusados de abuso de poder ou sequestro

Autarca diz ter dado ordem à Polícia Municipal para “começar a deter pessoas”. “Um disparate e um perigo”, diz Rui Moreira. E há quem alerte: “Agentes podem ser acusados de abuso de poder ou sequestro.” Instalações daquela polícia não têm, sequer, salas para detidos.
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A Polícia Municipal (PM) já efetua detenções - desde que em flagrante delito. Essa possibilidade está estatuída desde 2004 na lei que regula a atividade destas forças. Não será, pois, para anunciar algo que existe há mais de 20 anos que o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, afirmou esta segunda-feira à SIC ter dado ordens ao comandante da Polícia Municipal, José Carvalho Figueira, para que os agentes “comecem a deter pessoas”, informando até que “as detenções já estão a acontecer” - o que qualificou como “uma grande mudança na filosofia de atuar na cidade”.

Mudança que deixa estarrecido o seu homólogo portuense, Rui Moreira. Este, em declarações ao DN, qualifica a ordem anunciada como “um perigo e um disparate”, considerando que autarcas terem órgãos de investigação criminal na respetiva competência - que crê ser o que resulta da pretensão de Carlos Moedas - “viola a Constituição” e equivaleria a “avançar para o modelo americano dos xerifes”, abrindo “uma Caixa de Pandora”.

As Polícias Municipais de Lisboa e do Porto, diz Moreira, “são constituídas por agentes da PSP, é verdade. Mas a nossa função não é investigação criminal. Acho aliás que viola princípios da Constituição. Há competências que o Estado não pode delegar, nem sequer para as autarquias, não pode descentralizar. O Estado tem o monopólio da força, quer da defesa das fronteiras, quer da segurança interna. E isso não pode ser distribuído através de 308 municípios, não faz sentido nenhum. Nem que houvesse regionalização estaria de acordo em que se descentralizasse essa competência. Porque, senão, estamos a avançar para o modelo americano dos xerifes.”

Também uma fonte ligada à Câmara de Lisboa, que conhece bem a respetiva PM, reputa o anúncio de Moedas de “estranho”, aventando que terá sido “mal aconselhado”.

“O Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República [PGR] afirmou taxativamente, num parecer de 2008, que as Polícias Municipais não são órgãos de polícia criminal. Esse parecer continua em vigor, e o presidente da Câmara de Lisboa não tem competência para, sequer, pedir outro ou uma aclaração deste à PGR. Quem pode fazê-lo é o Ministério da Administração Interna [MAI]”, explica esta fonte.

“Até existir essa aclaração, ou uma alteração do parecer, não podem ser dadas ordens aos agentes em relação às quais eles possam sentir-se inseguros. Têm de ter garantias jurídicas da sua atuação, porque se o Ministério Público não concordar com uma detenção, os agentes correm o risco de ser acusados de crimes de abuso de poder ou sequestro.” Acresce, informa, que “a Polícia Municipal de Lisboa não tem, sequer, instalações para deter alguém, não tem salas de detenção.

“Estão vedadas às PM as competências próprias de órgãos de polícia criminal”, diz PGR

Por outro lado, prossegue o mesmo emissor, “a PM de Lisboa, para as inúmeras competências que tem, precisa de um efetivo de 800 agentes - e terá metade. É verdade que existe um crescimento do sentimento de insegurança na cidade, mas esse sentimento de insegurança também advém do ruído, da falta de iluminação, do estacionamento ilegal, do trânsito caótico, da falta de higiene urbana. As pessoas queixam-se de falta de fiscalização nessas áreas, e pretende-se dar ainda mais responsabilidades à PM? Já existe uma força territorialmente competente na zona para proceder a investigação criminal: é a PSP.”

De facto, no referido parecer do Conselho Consultivo da PGR, efetuado em 2008 a pedido do Ministério da Administração Interna, as Polícias Municipais são definidas como “serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa no espaço territorial correspondente ao do respetivo município”, que “não constituem forças de segurança, estando-lhes vedado o exercício de competências próprias de órgãos de polícia criminal.”

E conclui-se: “Não sendo as Polícias Municipais órgãos de polícia criminal, está vedado aos respetivos agentes a competência para a constituição de arguido.”

Asserções que em 2018, a pedido da Câmara do Porto, a Procuradoria-Geral Distrital frisou serem vinculativas: “Reconhecendo-se embora que esta conclusão poderá não estar completamente adaptada ao atual quadro funcional das Polícias Municipais de Lisboa e Porto, o parecer é vinculativo (…).” 

O que significa que para o Ministério Público as PM não podem efetuar detenções fora das circunstâncias já previstas na Lei n.º 19/2004 (Lei da Polícia Municipal), no respetivo artigo 3.º, número 3: “Os órgãos de polícia municipal têm competência para o levantamento de auto ou o desenvolvimento de inquérito por ilícito de mera ordenação social, de transgressão ou criminal por factos estritamente conexos com violação de lei ou recusa da prática de ato legalmente devido no âmbito das relações administrativas.” 

No número 4 do mesmo artigo fica claro que qualquer detido pelas Polícias Municipais em flagrante deve ser entregue ou ao MP ou às polícias com competência criminal: “Quando (…) os órgãos de Polícia Municipal diretamente verifiquem o cometimento de qualquer crime podem proceder à identificação e revista dos suspeitos no local do cometimento do ilícito, bem como à sua imediata condução à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal competente.”

MAI deverá pedir novo parecer à Procuradoria

Não se trata pois, como o edil do Porto sublinha, de uma diferença de opinião política; está em causa uma questão de legalidade, a qual, de resto, Carlos Moedas admitiu, nas declarações citadas, ainda não ter clarificado: “Depois podemos clarificar em termos jurídicos, mas as Polícias Municipais são polícias de Segurança Pública.”

Esta terça-feira, ao fim do dia, o presidente da CML tentou esclarecer o sentido das suas declarações: “A Polícia Municipal está na rua e, se houver um crime, a Polícia Municipal - que, repito, são polícias de Segurança Pública - tem de atuar. Eu dei essa indicação ao comandante e posso dizer que, em Lisboa, todos os dias tem havido esse tipo de detenções, mas, obviamente, depois tem de chamar a PSP.”

Precisando que a “orientação” foi por si dada “há mais de um ano” ao comandante José Carvalho Figueira, o autarca lamenta que as detenções estejam dependentes da chegada ao local da PSP, considerando que essa exigência legal “cria uma perceção errada sobre a Polícia Municipal”.

Até ao momento, o MAI não se pronunciou sobre a ação de Carlos Moedas, tendo, em resposta ao Expresso, reconhecido que “os poderes da Polícia Municipal (…) estão previstos na lei aplicável”, mas que face às respetivas declarações “a matéria está a ser analisada do ponto de vista técnico-jurídico”. O que quererá dizer que vai pedir um novo parecer à PGR.

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