"Perplexidade”, “incómodo” e uma certeza: “Seguramente este posicionamento [de Ricardo Leão] não encaixa”, referem ao DN dirigentes socialistas, “no que o PS defende desde sempre e não é, de todo, a nossa matriz histórica e ideológica nem o que pensa a maioria dos socialistas”..A conclusão é clara: “Deixou de ter condições, é óbvio, para liderar uma Federação [a de Lisboa] e para ser o candidato do PS nas autárquicas do próximo ano à Câmara de Loures, e devia já recuar e anular esse regulamento dos despejos”..As críticas e os “incómodos” não se resumem somente à ameaça de despejar “sem dó nem piedade”, por via de um regulamento autárquico, os que, sendo titulares de “habitação municipal de Loures”, tenham participado nos distúrbios na Área Metropolitana de Lisboa. Juntam-se às “perplexidades” dos dirigentes socialistas ouvidos pelo DN a ameaça anterior de despejar 22% [num total de 2500 fogos municipais] dos que não pagam rendas e o apoio e defesa de Carlos Moedas, autarca de Lisboa e do PSD, que quer a Polícia Municipal com poderes para deter cidadãos..E nem o recuo de Ricardo Leão, em comunicado, garantindo que “as declarações tornadas públicas (…) eram referentes, única e exclusivamente, a casos transitados em julgado” e que “nunca o município se deve sobrepor ou substituir ao poder judicial. Nem nunca o fará”, travam as críticas e os “embaraços”. .Acresce à polémica, o apoio à coexistência do privado, do público e do social na prestação dos serviços de saúde, “contrariando o partido socialista, que defende o reforço do SNS”, refere ao DN fonte parlamentar que classifica esta tese como “liberal”. .No primeiro caso, o “constrangimento” com as palavras “desadequadas” - “quem é maior de idade, é titular de um arrendamento na habitação municipal de Loures e seja comprovado que participou nestes atos, é para retirar a casa, ponto final parágrafo, sem dó nem piedade“ - já levou, por exemplo, Alexandra Leitão, líder parlamentar, Cláudia Santos, deputada, João Costa, ministro da Educação, Francisco Assis, eurodeputado, Isabel Moreira, deputada, e Miguel Prata Roque, ex-secretário de Estado da Presidência, a condenarem “atos que põem em causa direitos elementares” e a aproximação ao argumentário das “concertinas do Chega”..Elza Pais, deputada, dirigente do partido e líder das mulheres socialistas, diz-se “claramente incomodada com a exclusão social” patente nas palavras de Ricardo Leão e salienta ao DN, recordando, o princípio de que “mesmo as pessoas condenadas pela justiça têm direito à ressocialização”..É, sublinha, “meu dever defender uma sociedade decente, a recusa da justiça popular e de qualquer tipo de dtscriminação. É defender a dignidade da pessoa humana, os princípios de uma sociedade democrática pela qual nos pautamos, não só as mulheres socialistas, mas também, desde sempre, o Partido Socialista”..Um recado: “Só se formam guetos onde os processos de integração falham.”.A dirigente socialista entende, por isso, que o regulamento dos “despejos” deveria ser anulado - “era o mínimo”, diz -, travando assim o que é “um exemplo de políticas de exclusão”..Alexandra Leitão, a líder parlamentar já tinha, no X, avisado o autarca de Loures de que “um regulamento municipal não pode nunca introduzir penas acessórias”, sobretudo quando, acentuou, se colocam “em causa direitos fundamentais e princípios como a dignidade da pessoa humana e a proporcionalidade”. .Ao DN, um dirigente socialista diz-se “perplexo” com o “facto de um autarca do PS apoiar e promover políticas do Chega, desrespeitando o ideário ideológico socialista, e, em lugar de pedir desculpa e assumir o erro, enreda-se em explicações que só prejudicam o partido e o fragilizam a meses das eleições autárquicas”..Outro dirigente, salientando que a decisão sobre o que fazer com Ricardo Leão é “competência da direção”, e que o caso “deve ser discutido dentro do PS, até porque Loures é um concelho importante” na região de Lisboa, manifesta perplexidade com “declarações que contrariam toda a política de habitação e de integração social” que o PS no governo e “agora na oposição continua naturalmente a defender”..O outro “espanto” está relacionado com o anúncio, no início de outubro, de que “22% [dos que vivem em habitação municipal de Loures] vão ser todos despejados”, porque “são casas ocupadas, nitidamente ocupadas. É como a água. Como é possível que dos 2500 fogos só haver 750 contadores ativos? O resto vivia sem água? Roubavam a água e isto é a verdade”. .A alegação de Ricardo Leão de que o aviso de que para “quem não aderisse ao plano [de regularização da dívida]” a solução se traduziria em “despejos” é questionada por dirigentes do PS..“E depois faz o quê? O que vai fazer às centenas de famílias que vão para a rua? Percebo que haja um problema, e que até não seja fácil, mas despejar pessoas é o limite dos limites. Isto é política social?”, equaciona outro socialista. .No jornal do PS, Cláudia Santos, deputada e professora de Direito na Faculdade de Coimbra, escreveu um artigo considerando que as palavras de Ricardo Leão “devem ser rejeitadas” por serem de “uma gravidade inaudita”..Apresentando como argumentos jurídicos vários artigos da Constituição, diz ser “incompreensível que se pretenda que quem pratica crimes de dano, ou até de ofensa à integridade física, fique sem casa, mas não quem seja condenado por homicídio qualificado, corrupção, violação ou violência doméstica”..Os argumentos de Ricardo Leão, refuta a deputada, revelam “uma impensável incompreensão da hierarquia dos valores que o direito penal deve proteger”..O que foi anunciado, sublinha, representa “uma medida indigna do nosso património civilizacional e da nossa herança político-criminal”, que só poderá ter um resultado: “Contribuir para fazer crescer a revolta e fazer nascer inimigos.” .Despejar “sem dó nem piedade” é inconstitucional.Apesar de, no dia seguinte, o presidente da Câmara Loures ter procurado retratar-se dizendo que os despejos só aconteceriam depois do crime julgado e transitado em julgado e que a autarquia “cumpriria sempre a lei”, o DN apurou que não seria possível fazê-lo sem desrespeitar a Constituição da República. “Os regulamentos municipais não são leis, não são diplomas legais, são regulamentos administrativos e devem obediência às leis, e acima das leis, à Constituição”, disse ao DN o constitucionalista Tiago Serrão, que sublinha: “Um regulamento que preveja uma sanção deste tipo viola diretamente a Constituição.”.A advogada Conceição Gonçalves vai mais longe. “Não poderiam ser despejados, desde logo porque há o direito da presunção de inocência para o réu, que existe em termos de processo criminal.” Além disso, refere, “não se pode promover um despejo na suposição de que alguém tenha cometido um crime”. A lei prevê que qualquer suspeito da prática de um crime tenha de ser julgado num tribunal, a quem cabe provar a culpa. Só depois de uma sentença transitada em julgado é que se pode dizer que um indivíduo cometeu um crime. “Só por aí essa premissa teria caído por terra”, reforça a advogada..Tiago Serrão salienta igualmente a falta de nexo causal nesta situação. “Seria tirar consequências numa esfera totalmente alheia à prática desses factos e já a partir do pressuposto de que esses factos eram comprovados.” No entanto, o constitucionalista reforça que, com ou sem condenação, “dificilmente seria constitucional, porque um órgão administrativo não pode retirar essas consequências, e muito menos havendo uma mera suspeição”. .De facto, acrescenta Conceição Gonçalves, o regulamento camarário nunca poderia tomar esta iniciativa, pois qualquer medida regulamentada tem sempre de ter por base uma lei habilitante que venha do governo ou da Assembleia da República. Neste caso, “a lei habilitante seria no âmbito das casas de habitação social, mas essa não habilita com certeza os despejos, a não ser pela falta de pagamento de rendas, nunca pela suspeição de prática de crimes”, assegura. No limite, “teria de haver uma alteração à lei para que o regulamento camarário pudesse fazê-lo”..Num estado de direito democrático, revela ainda Tiago Serrão, “esse tipo de decisões seria sempre crime de violação da própria Constituição e dos direitos fundamentais das pessoas” e, complementa Conceição Gonçalves, “os direitos básicos, felizmente, ainda funcionam em Portugal..Com Fátima Ferrão