Ihor Homeniuk, que, como frisou a resolução governamental, morreu no aeroporto de Lisboa “à guarda do Estado”, com a mulher e filha.
Ihor Homeniuk, que, como frisou a resolução governamental, morreu no aeroporto de Lisboa “à guarda do Estado”, com a mulher e filha.DR

Estado quer ser ressarcido dos 713 mil euros pagos à família de Ihor

Estado exige aos três ex-inspetores do SEF condenados pela morte do cidadão ucraniano o pagamento dos mais de 700 mil euros entregues à família. Condenados contestam montante, critérios e até legalidade de uma das mais elevadas indemnizações já outorgadas no país. "Foi uma decisão política", acusam.
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Ao pagar uma indemnização de 712 950 euros à família de Ihor Homeniuk, “o Estado português poderá ter acautelado muitos interesses, mas tais interesses não foram – à evidência – os dos seus contribuintes.” A decisão de pagar foi “política”, “destinada a salvar a face do governo português perante, designadamente, a comunidade internacional e sob forte pressão por parte dos media, nacionais e internacionais”.

Esta é uma das principais acusações que Luís Silva, um dos três ex-inspetores do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) – os outros são Duarte Laja e Bruno Sousa – condenados por terem causado a morte, em março de 2020 e sob a custódia desta polícia, do cidadão ucraniano, faz na respetiva contestação da pretensão do Estado português de exercer sobre eles o chamado “direito de regresso”, ou seja, a ser ressarcido do que pagou – o que implicaria receber, de cada um, 237 650 euros.

Demitidos da função pública em outubro de 2023 e a cumprir na prisão de Évora as penas de nove anos que lhes foram aplicadas pelo crime de ofensas à integridade física qualificada e agravada pelo resultado (morte), os três ex-inspetores alegam que a indemnização, arbitrada em dezembro de 2020 pela Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, ultrapassa “os valores considerados justos e equitativos, em situações similares, pela jurisprudência uniforme dos tribunais superiores” (citação da contestação de Luís Silva, à qual o DN teve acesso, a primeira a dar entrada no tribunal e cuja argumentação é seguida pelas dos outros dois ex-inspetores).

Frisam igualmente que a Provedora se baseou, para o cálculo dos danos patrimoniais – num total de 314 950 euros –, nas informações comunicadas pela viúva de Ihor, Oksana Homeniuk, sem apresentação de qualquer prova documental quer quanto ao que Ihor auferia quer quanto aos rendimentos da própria. “Chocante é constatar que o Estado português, no âmbito do procedimento extrajudicial de indemnização de Ihor Homeniuk, não tenha exigido – muito menos obtido – qualquer comprovativo documental de que aqueles eram, efetivamente, os rendimentos de um e de outro”, insurge-se a advogada de Luís Silva, Maria Manuel Candal, na referida contestação.

Afirmando desconhecer se, como é alegado, a viúva de Ihor tinha a profissão de professora e auferia 300 euros por mês, e “não acreditar, nem por um instante, que o falecido Ihor Homeniuk tivesse um rendimento mensal de 1500 euros na atividade de construção civil, num total anual de 18 mil euros”, Candal cita a decisão da Provedora de Justiça, a qual reconhece essa mesma ausência de prova: “No caso da vítima, sem que haja junção de comprovativo documental, invoca-se um rendimento mensal de cerca de 1500 euros (…). Cumpre superar a evidente dificuldade gerada pela não apresentação de prova documental do rendimento alegado, designadamente de índole fiscal (…).” Comenta a causídica, cáustica, que a Provedora superou a dificuldade “dando de barato” que a informação comunicada estava correta.

Compensação a pai de Ihor foi ilegal, acusa ex-inspetor

Também a fixação dos montantes para os danos morais (ou não patrimoniais) e para o sofrimento de Ihor antes da morte é motivo de indignação na citada contestação. Assevera estarem em causa valores muito superiores – entre 10 vezes mais (no caso do sofrimento antes da morte, que foi avaliado em 100 mil euros) e duas vezes mais (no caso dos danos morais da viúva e dos filhos, 56 mil euros para cada) – aos atribuídos pela jurisprudência dos tribunais superiores em danos similares.

Reputa ainda de “pura e simplesmente ilegal” a compensação por danos morais paga ao pai de Ihor (50 mil euros).

Para comprovar tal ilegalidade, Luís Silva alega, primeiro, que aquando da  habilitação de herdeiros efetuada na Ucrânia após a morte de Ihor,  o seu progenitor renunciou, a favor da nora e dos netos, a qualquer direito (facto confirmado pelo DN nos documentos apensos à decisão da Provedora); segundo, a lei portuguesa, através do artigo 496º do Código Civil, estabelece que, numa situação de morte, o direito a ressarcimento por danos não patrimoniais só é devido a ascendentes caso não haja cônjuges não separados e filhos; terceiro, a resolução do Conselho de Ministros que em 10 de dezembro de 2020 decidiu a atribuição de uma indemnização à família, a arbitrar pela Provedora, referia apenas a viúva e os dois filhos como recipientes da mesma. De facto, na mesma lê-se: “Assumir, em nome do Estado, a responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização pela morte do cidadão Ihor Homeniuk à sua viúva e aos seus dois filhos”.

Porém a Provedora entendeu, ao fixar a indemnização por danos não patrimoniais, “não desmerecer a dor dos pais (…) pela circunstância de concorrerem cônjuge e filhos”, assumindo que tanto na fixação do valor da compensação do progenitor como da viúva e filhos “os valores estabelecidos têm como horizonte o máximo adotado em procedimentos similares, superando-o.”

Estado obrigado a exercer “direito de regresso”

Apresentadas durante o mês de fevereiro, as contestações dos ex-inspetores são a resposta à ação de que o Estado português deu entrada, ainda em 2023 (dentro do prazo de três anos existente para exercer o direito de regresso), no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, requerendo que este ordene aos três ex-inspetores que reembolsem o erário público do montante despendido.

Na sua petição inicial, a que o DN teve acesso, o Estado, representado nesta ação pelo Ministério Público, lembra que logo na resolução do Conselho de Ministros que a 10 de dezembro de 2020 assumiu o pagamento da indemnização é dito que será exercido o direito de regresso relativamente à mesma “nos termos que resultarem da responsabilidade individual judicialmente provada”. E cita a Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Coletivas, a qual determina que o Estado e as pessoas coletivas de direito público “são responsáveis de forma solidária com os respetivos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, se as ações ou omissões (…) tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício”; sempre que o Estado e pessoas coletivas de direito público atribuam qualquer indemnização por aquele tipo de situação, “gozam de direito de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários e agentes responsáveis”, sendo este exercício “obrigatório”.

Concluindo: “Sentenciada criminalmente a culpa dos réus [os três ex-inspetores] na morte de Ihor Homeniuk, quando em funções públicas (…), tem o Estado português o direito de por eles ser ressarcido integralmente nos montantes que pagou aos herdeiros do falecido, ou seja a reaver os 712 950 euros.”

Há mais acusados pela morte, alegam condenados

Sucede porém, como refere na respetiva contestação o ex-inspetor Luís Silva, que há outro processo criminal a correr, aguardando julgamento, em relação com a morte de Ihor, com mais cinco arguidos.

Trata-se de três inspetores do extinto SEF – incluindo o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, António Sérgio Henriques, entretanto, tal como os três ex-inspetores condenados, expulso da função pública –, e dois seguranças da empresa de segurança privada Prestibel, Manuel Correia e Paulo Marcelo. Dois dos inspetores em causa – Cecília Vieira e João Agostinho – estão acusados de homicídio negligente por omissão, o que significa co-responsabilidade na morte de Ihor.

Estabelecendo a resolução do Conselho de Ministros que a responsabilidade indemnizatória se assumia “relativamente à morte de um cidadão à guarda do Estado e em instalações públicas”, argumenta Luís Silva que o direito de regresso, a ser reconhecido, teria de se exercer igualmente sobre os arguidos deste outro processo, no caso de virem a ser condenados. Daí que requeira que esses arguidos e a empresa Prestibel sejam chamados ao processo instaurado pelo Estado no Tribunal Administrativo, e que esta mesma ação seja suspensa até existir uma decisão, com trânsito em julgado, no processo criminal, aduzindo: “A decisão que venha a ser proferida neste processo crime é absolutamente indispensável para a boa decisão da presente causa”.

Tendo a viúva de Ihor apresentado, neste novo processo-crime, um pedido de indemnização (que o juiz do processo considerou fora de prazo) de 700 mil euros –a entregar às vítimas da guerra na Ucrânia – em relação aos referidos cinco arguidos e à empresa de segurança privada Prestibel, Luís Silva contesta a sua legitimidade: “Dúvidas não existem de que, com o pagamento à assistente e demais herdeiros de Ihor Homeniuk da quantia apurada no âmbito do denominado Processo de Indemnização (…) ficaram aqueles inteiramente ressarcidos de todos e quaisquer danos sofridos pelo falecido Ihor desde a sua entrada em Portugal e até ao seu falecimento. Não assiste, pois, à assistente [a viúva] e demais herdeiros o direito a qualquer outro valor a título de indemnização.”

Estado assumiu “obrigação natural”

Por fim, Luís Silva afirma que o Estado não tem na verdade qualquer direito de regresso – nem sobre os três condenados passados nem sobre futuros condenados - em relação à indemnização atribuída.
Isto porque, argumenta o ex-inspetor, a decisão de a pagar “não foi resultado de uma qualquer condenação judicial (…). Se o Estado português decidiu proceder ao pagamento da aludida indemnização, fê-lo no cumprimento daquilo que terá perspectivado como uma obrigação natural, e não ao abrigo de qualquer obrigação civil.”
E prossegue, lembrando que foi o próprio Estado a, em novembro de 2020, em sede do processo criminal contra os três inspetores e através do Ministério Público (que assim assumia o papel simultaneamente de acusador dos arguidos e de defensor do Estado do qual eram funcionários), declarar a “nulidade insanável” do pedido de indemnização de 999 mil euros do qual Oksana Homeniuk ali dera entrada, por considerar que o tribunal em causa – o criminal – não era para tal competente.

O ex-inspetor também recorda que, uma vez decidido pelo governo o pagamento de uma indemnização a Oksana e filhos, o tribunal criminal perguntou à viúva, que era assistente no processo criminal, se mantinha interesse no pedido de indemnização ali efetuado, tendo esta desistido do pedido, declarando-se “inteiramente ressarcida”, o que levou o tribunal a extinguir a instância cível.

Por fim, Luís Silva proclama que jamais os ex-inspetores seriam condenados, pelo tribunal, a pagar uma indemnização do valor “unilateralmente decidido pelo Estado”. Isto porque, explica, não só o pedido efetuado pela viúva entrara fora de prazo –o que deveria, considera, implicar a respetiva nulidade – como o tribunal nunca atribuiria um valor “sequer próximo” do que foi pago à família, “por total ausência de fundamento legal” e “total ausência de fundamento de facto.”

Recorde-se que em novembro de 2021, aquando do julgamento dos recursos dos ex-inspetores no Tribunal da Relação, o procurador que ali representava o Ministério Público, Fernando Ferreira Lino, criticou o valor da indemnização atribuída à família de Ihor, considerando que “se o Estado português tiver de dar tanto dinheiro por uma indemnização vai à falência em pouco tempo”.

Na altura, o advogado de Oksana Homeniuk, José Gaspar Schwalbach, reagiu invocando as indemnizações, igualmente fixadas pela Provedora de Justiça, respeitantes às vítimas dos incêndios de 2017: “Não podemos concordar com o senhor procurador, já que o valor foi arbitrado com base em critérios objetivos que já foram aplicados no caso dos incêndios de Pedrógão.”

Contactado agora pelo DN, Schwalbach assumiu não conhecer o teor das contestações apresentadas pelos ex-inspetores no Tribunal Administrativo. Adiantando que apresentou já recurso da decisão que considerou extemporâneo o pedido de indemnização efetuado no segundo processo-crime, sustenta que aquele não colide com a compensação pecuniária já paga pelo Estado porque “a causa de pedir é distinta, quer quanto aos crimes (sequestro, omissão de auxílio), quer quanto às partes (arguidos e empresa de segurança)”.
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