Uma mulher de 32 anos - chamemos-lhe Maria - acusa a diretora do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Tomar/Unidade Local de Saúde Médio Tejo, Ivone Caçador, de recusar o seu pedido de laqueação de trompas sem justificação legal. De acordo com Maria, a médica invocou a sua idade e o facto de ter um só filho, com menos de um ano, garantindo-lhe que nem ali nem em qualquer hospital do SNS lhe fariam a intervenção..Desde 1984 (Lei 3/84, de 24 de março, artigo 10º) que em Portugal é garantido o direito à esterilização voluntária, sem outro critério que não o da idade: “A esterilização voluntária só pode ser praticada por maiores de 25 anos, mediante declaração escrita devidamente assinada, contendo a inequívoca manifestação de vontade de que desejam submeter-se à necessária intervenção e a menção de que foram informados sobre as consequências da mesma, bem como a identidade e a assinatura do médico solicitado a intervir.” .De acordo com o obstetra José Furtado Preso, membro do Colégio de Obstetrícia e Ginecologia da Ordem dos Médicos, sendo a “laqueação tubar um procedimento com objetivo bem definido no planeamento familiar, considerado método de contraceção definitiva que pode ser praticada por mulheres com mais de 25 anos”, “não havendo contra-indicação para o procedimento, o médico só pode recusar alegando objeção de consciência”..O mesmo certifica a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) num relatório de 2009 sobre consentimento informado: “O legislador português consagrou expressamente um direito à esterilização, apenas exigindo que a pessoa seja maior de 25 anos”..A denúncia do caso do Hospital de Tomar surgiu na quarta-feira na conta de Instagram da Associação Escolha - cujo objetivo é defender os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, nomeadamente no acesso à interrupção de gravidez, e que partilhou, com autorização de Maria, as mensagens que esta lhe enviou. .“Fiz o pedido ao médico de família, que me encaminhou para o hospital de Tomar. A médica que me atendeu lá avisou-me logo de que não iria ser aceite mas ia passar à chefe do departamento de obstetrícia, a Dra Ivone”, lê-se nas mensagens. “A Dra Ivone ligou-me hoje a dizer que não irão fazer o procedimento porque: tenho 32 anos, um filho de menos de um ano e não tenho nenhuma condição grave. Disse-me ainda que um dia o meu filho pode ficar doente e que [posso precisar] de fazer outro filho para o conseguir tratar (o que só por si é uma barbaridade de se dizer). Tudo isto foi por telefone, e quando tentei defender a minha posição – sei que tenho direito legal pela lei portuguesa – recebi de resposta que ela não tinha tempo para falar comigo porque tinha pacientes com cancro para atender.”.Contactada pelo DN, Maria conta que o seu médico de família não levantou qualquer questão sobre a sua decisão – “Percebeu a minha posição”–, e que foi a duas consultas de planeamento familiar no hospital, nas quais foi examinada e respondeu a várias perguntas (“Incluindo o que o meu namorado achava”), e, depois de advertida de que se trata de uma operação irreversível, assinou o documento a requerer a intervenção. Com uma particularidade que Maria considerou estranha: “A médica pediu-me para escrever que ela me tinha tentado demover e avisou logo que não iam permitir, mas que dependia da chefe." .A seguir, na quarta-feira 21 de agosto, aconteceu o telefonema relatado, da iniciativa da diretora de serviço. “Perguntei se podia fazer noutro sítio, e ela disse que não. Que nenhum hospital público me ia fazer e num privado só se quisessem o meu dinheiro – mas mesmo assim era muito difícil. Não invocou nenhum motivo clínico nem objeção de consciência, só disse aquilo sobre o meu filho, que tem 10 meses. Fiquei muito chocada, foi horrível vir com aquela ideia.”.“Decisão não foi baseada em qualquer convicção pessoal”.O DN confrontou esta segunda-feira o hospital com as afirmações atribuídas por Maria à diretora do serviço, solicitando que esta esclarecesse se efetivamente afirmou que o procedimento não seria feito ali nem em outro hospital público, e se mencionou uma eventual doença do bebé..A resposta que foi enviada ao jornal não contém esse esclarecimento, limitando-se a declarar: “A diretora do Serviço de Ginecologia-Obstetrícia recusa veementemente quaisquer suspeitas sobre a sua atuação clínica, ética e deontológica. (...) Numa conversa telefónica informal mantida com a utente, confirma que interrompeu as consultas de cirurgia oncológica, para a informar a utente sobre a sua atual não elegibilidade para o procedimento – um parto muito recente, há menos de um ano, e a necessidade de realizar um procedimento muito invasivo, com anestesia, que implica riscos (...). O critério que levou à decisão tomada (...) foi exclusivamente clínico (...).”.Também a resposta do hospital às perguntas do DN, enviada antes do esclarecimento da médica, invoca “critérios única e exclusivamente clínicos”. Mas assevera que “a utente foi informada de que poderia solicitar referenciação para outra unidade do SNS. (…) Foi explicado à utente, pela Diretora do Serviço (...), como deveria proceder para ser referenciada para outra unidade do SNS”..Sublinhando que “a Direção de Serviço de Ginecologia-Obstetrícia (...) cumpre escrupulosamente o postulado na lei e respeita integralmente a decisão pessoal de cada uma das suas utentes em matéria de planeamento familiar, bem como a sua autonomia” e que “em momento algum, neste caso particular, esses direitos foram postos em causa”, o hospital explica que “foi considerado (…) que a realização deste procedimento cirúrgico (...) num momento de pós-parto/puerpério da utente, envolveria riscos para a sua saúde que são desproporcionais. Especialmente tendo em conta que não existem quaisquer critérios clínicos que a exijam, bem como a existência de alternativas contracetivas menos invasivas, que foram disponibilizadas gratuitamente à utente, sem sucesso”..Garante ainda que não esteve em causa objeção de consciência, porque nenhum dos clínicos do departamento é objetor para a esterilização. “Esta decisão (...) foi tomada após uma cuidadosa avaliação do estado de saúde reprodutiva da mesma – puérpera, com um filho de idade inferior a um ano – e das suas necessidades contracetivas (…) e de forma alguma baseada em qualquer convicção pessoal.”.“Trata-se de um óbvio incumprimento da lei – é o chamado poder médico”.“Dizerem que a recusa foi por motivos clínicos colide com a informação que dão sobre a disposição de me referenciarem para outro hospital: o outro hospital ia ter outros critérios?”, questiona Maria. “Sendo que em momento nenhum recebi qualquer comunicação do hospital a dizer que iria ser encaminhada para outro hospital.”.Também a menção ao puerpério a deixa perplexa: “Que eu saiba, não estou em ‘pós-parto’ nem em puerpério. E não houve nenhuma referência isso nem do meu médico de família, nem da outra médica da consulta de planeamento familiar do hospital, nem sequer pela Dra Ivone. Aliás fizeram-me uma ecografia para ver se havia alguma condição que objetasse à laqueação, e não havia. Nada justifica a informação que o hospital está a dar.”.De facto, obstetras consultados pelo DN, assim como a informação disponível em vários sites de saúde, atestam ser o puerpério o período de 42 dias após o parto. “A definição de puerpério é o período de seis semanas após o parto e no qual ocorre a regressão das alterações próprias da gravidez”, informa o já mencionado membro do Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos. “Existem ainda autores que falam na primeira menstruação após o parto. Nestes casos relacionados com a amamentação, e até com a contraceção, o período alarga para além das seis semanas. A primeira em termos práticos é mais consensual.”.Uma obstetra com muitos anos de profissão e que já exerceu funções diretivas, mas prefere não ser identificada, começa por advertir que “mesmo se a utente estivesse em puerpério ou em pós-parto imediato podia-se fazer a laqueação”. Mas, prossegue, “não está, e preencheu todos os trâmites legais para fazer a laqueação (tem idade para, requereu, assinou)”. Por outro lado, frisa, “nenhuma decisão dessas é comunicada pelo telefone. Tem de haver uma consulta e a utente tem direito a uma justificação por escrito. Se houver recusa invocando objeção de consciência, tem de se referenciar para outro médico/serviço.”.Pelo que, conclui, “trata-se de um óbvio incumprimento da lei. Podem alegar que têm muito trabalho, que as condições de cirurgia são más, remeter para outra unidade, mas não podem recusar, muito menos nestes termos. No final, trata-se apenas de uma coisa chamada poder médico. A noção que ainda existe em muitos médicos de que a sua opinião, o seu julgamento, devem prevalecer sobre a vontade e decisão do utente.”.Até 2009, código deontológico contrariava lei: laqueação só se médico concordasse.Uma noção de “poder médico” que no que respeita à esterilização voluntária esteve até 2009 inscrita no Código/Estatuto Deontológico da Ordem dos Médicos, contrariando a lei da República..De facto, no artigo 54º (Esterilização) do referido Código lia-se: “A esterilização irreversível só é permitida quando se produza como consequência inevitável de uma terapêutica destinada a tratar ou evitar um estado patológico grave dos progenitores ou dos filhos”. Impunha-se como “particularmente necessário” que “se tenha demonstrado a sua necessidade”; “que outros meios reversíveis não sejam possíveis”; “que, salvo circunstâncias especiais, os dois cônjuges tenham sido devidamente informados sobre a irreversibilidade da operação e as suas consequências”. Dizia ainda, quanto à “esterilização reversível”, que seria apenas autorizada “perante situações que objectivamente a justifiquem, e precedendo sempre o consentimento expresso do esterilizado e do respectivo cônjuge, quando casado”..Assinale-se a coincidência entre algumas destas condições – só se “permitir” a esterilização definitiva quando se demonstrasse a sua necessidade e outros meios reversíveis não fossem possíveis (em suma, quando o médico achasse bem) – e as justificações apresentadas pelo hospital para a recusa da laqueação: não havia “quaisquer critérios clínicos” a exigi-la, existindo “alternativas contracetivas menos invasivas”..Em contraste, o atual Estatuto Deontológico dos Médicos determina, no artigo 74º, “Laqueação turbária e vasectomia”: “Os métodos de esterilização irreversível, laqueação tubária e vasectomia só podem ser realizados a pedido do próprio e com o seu expresso e explícito consentimento pleno, após esclarecimentos detalhados sobre os riscos e sobre a irreversibilidade destes métodos”; “Exceto em situações urgentes com risco de vida, é desejável a existência de um período de reflexão entre esta prestação de esclarecimentos e a tomada final da decisão.”.Houve, da versão anterior para a atual, não só a obrigatória compatibilização com a lei, como uma correta reperspectivação: agora o centro é a vontade e liberdade do indivíduo e não o poder e o julgamento (inclusive moral) do médico. .“Assim está correto”, comenta outra obstetra ouvida pelo DN, que igualmente prefere não ser identificada. “Se me aparecer uma mulher com 32 anos que quer fazer laqueação, falo com ela, para ter a certeza de que percebe as implicações: se vier a mudar de ideias só poderá engravidar por procriação assistida. Mas não posso recusar por achar que se pode arrepender. A lei não impõe qualquer restrição, nem sequer que já tenham filhos. Portanto se uma mulher, depois de devidamente esclarecida, me diz que quer fazer, só tenho de obedecer, ou remeter para outro profissional. É uma questão de bom senso, de respeito. Não podemos usar a nossa profissão, os nossos conhecimentos e estatuto, como uma arma de poder”..“Parece que há quem escolha obstetrícia para limitar direitos das mulheres”.Maria não podia estar mais de acordo: “Às vezes parece que há quem escolha obstetrícia para poderem limitar as escolhas das mulheres. Entretanto falei com outras mulheres que tentaram laquear as trompas e nenhuma tinha conseguido.”.O DN não conseguiu, em tempo para este artigo, confirmar a existência de outras recusas de laqueação de trompas em hospitais portugueses. Mas, como este jornal já reportou - nomeadamente a propósito da interrupção voluntária de gravidez, mas não só -, o conceito de objeção de consciência em vigor nos hospitais portugueses e, sobretudo, veiculado pelos estatutos deontológicos das ordens profissionais e pelas próprias ordens é, devido à inexistência de regulamentação específica, extremamente fluído..Malgrado a Lei de Bases da Saúde, de 2019, estatuir que os profissionais de saúde podem exercer objeção de consciência “nos termos da lei”, só nos diplomas sobre interrupção de gravidez, procriação assistida e eutanásia há especificações sobre como se processa a declaração de objeção. E nada se estabelece sobre a que atos em concreto, em relação com os cuidados em causa, se pode aplicar, e a quais, se alguns, não pode. Não existe mais legislação ou regulamento que elucide sobre aplicação e limites da objeção de consciência; não há sequer uma decisão judicial nacional, uma deliberação do regulador - a ERS. Nem tão-pouco um parecer do Conselho Nacional de Éticas para as Ciências da Vida - nada..Assim, a investigação do DN evidenciou que há inúmeras situações em que os profissionais de saúde exercem o direito à objeção sem qualquer requisito formal e enquadramento legal (por exemplo, há enfermeiros que recusam colher sangue e farmacêuticos hospitalares que recusam entregar medicamentos existentes nas farmácias hospitalares a auxiliares que os vão buscar a mando de um médico), ou até sem assumir que a recusa está enquadrada no exercício desse direito. .Isto apesar de decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, vinculativas, estipularem que o direito dos profissionais de saúde à objeção não pode prejudicar ou limitar o direito à saúde dos cidadãos, e que nesse conflito entre direitos o segundo deve prevalecer..O Regulamento de Deontologia Médica em vigor estabelece o direito à objeção de consciência (artigo 12º) desta forma: "O médico tem o direito de recusar a prática de ato da sua profissão quando tal prática entre em conflito com a sua consciência, ofendendo os seus princípios éticos, morais, religiosos, filosóficos, ideológicos ou humanitários”. O único limite consignado para este direito dos médicos, tal como proclamado pela respetiva Ordem, é o “risco para a vida e saúde do paciente”: quando existir esse risco, o profissional deve, mesmo se objetor para um determinado cuidado de saúde, prosseguir com ele. Quanto à forma de manifestação deste direito, surge, algo confusamente, sob a forma de opção: “A objeção de consciência é manifestada perante situações concretas em documento que pode ser registado na Ordem, assinado pelo médico objetor e comunicado ao diretor clínico do estabelecimento de saúde, devendo a sua decisão ser comunicada ao doente, ou a quem no seu lugar prestar o consentimento, em tempo útil.” .Hospital espera “queixa formal” para investigar caso .De acordo com o esclarecimento enviado pela diretora do serviço de obstetrícia e ginecologia do Hospital de Tomar, "a laqueação de trompas a pedido da mulher é um procedimento comum na unidade que dirige, quando estão reunidos os critérios clínicos", ocorrendo, "fora do quadro de cirurgia de parto por cesariana, entre duas a três dezenas de laqueações (...) por ano, a pedido da mulher, na unidade que dirige.".Malgrado ter justificado publicamente a decisão da diretora de serviço de obstetrícia, o Hospital de Tomar faz depender uma análise formal da situação da existência de uma queixa escrita: “Não foi registada qualquer reclamação formal pela utente em causa desta denúncia enviada à comunicação social (seja através do Livro de Reclamações, seja por qualquer comunicação junto do Gabinete do Utente da ULS Médio Tejo)”, declara. “Sem a existência de uma reclamação formal, não pode o Conselho de Administração tomar qualquer medida." .Maria, que contactou a Associação Escolha precisamente para obter ajuda na queixa contra o hospital, tem revolta na voz. “Claro que vou fazer queixa. E claro que, ao contrário do que diz o hospital, os meus direitos foram postos em causa. Mas acho surreal que seja necessário fazer uma reclamação escrita no livro de reclamações depois de todo este tratamento, quando dizem que a política do hospital é uma e a chefe de obstetrícia diz ser outra. E quando a decisão do hospital me foi comunicada por telefone, e não formalmente. O que é bastante conveniente, pois assim não tenho provas do que me foi dito e recusado. Podem agora invocar um motivo que nunca foi invocado e alegar que me disseram que podia ser reencaminhada, o que não aconteceu.”