António Bagão Félix, antigo governante e economista, é um dos coordenadores do livro Identidade e Família.
António Bagão Félix, antigo governante e economista, é um dos coordenadores do livro Identidade e Família.Paulo Alexandrino / Global Imagens

“A ideia da família não pode ser vista numa lógica de sociedade de mercado”

O livro Identidade e Família, escrito por 22 personalidades ligadas à direita portuguesa chegou esta semana aos escaparates. O DN falou com um dos coordenadores da obra, o antigo governante António Bagão Félix, que assume o respeito por outras formas de “ajuntamento familiar”, para além da “família natural”.
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Foi com estrondo que o livro Identidade e Família chegou às livrarias no início desta semana, depois de uma apresentação feita pelo antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, que até mereceu um protesto por parte de um grupo de duas dezenas de jovens que gritavam pela liberdade de ser e pelo “transfeminismo”.

A audiência, na livraria Buchholz, em Lisboa, apesar de ser vincadamente de direita, não contava com muitas figuras do PSD, para além do próprio anfitrião.

Ainda assim, quatro deputados do Chega, incluindo André Ventura, e o ministro da Defesa, Nuno Melo, estiveram lá. Foi assim que decorreu a afirmação do conceito de “família natural”, de acordo com um dos coordenadores da obra, o antigo governante e economista António Bagão Félix, que explicou ao DN o que é que este manifesto traz.

Há ameaças à família, neste momento? Quais?

Eu acho que a primeira ameaça é o individualismo exagerado. O individualismo é das coisas piores que fazem da família. Aliás, a propósito disso está aqui uma expressão do Frei Fernando Ventura [o autor de um dos textos], quando ele diz: A família é uma escola de ‘nós’ em tempo de ‘eus’. Esta definição está primorosa.

Na família, o resultado deve ser superior à soma das parcelas. Ou seja, à soma de cada um dos seus membros. E, hoje, o individualismo agressivo, obsessivo, é sem dúvida um grande adversário da coesão da família.

Outro adversário é o hiperconsumismo. Numa família ideal nós contamos mais por aquilo que somos do que por aquilo que temos. O ser vale mais do que o ter. Mas o hiperconsumismo, absolutamente desenfreado, é o outro adversário importante da família.

Depois, o modo como o Estado em geral vê a família como sujeito passivo de impostos. Mas a família é um bem público e, portanto, deve exigir políticas públicas que estimulem e favoreçam a estabilidade da família.

Outro adversário é, permita-me dizer, o espetáculo mediático. Refiro-me aos meios de comunicação mas também às redes sociais, onde o que é mais notícia é o fracasso da família. Não é o sucesso da família. Isto depois leva as pessoas a pensar que o fracasso, o desespero são a regra da família. E não é verdade.

Outro adversário importante da família é o relativismo ético, onde as pessoas confundem princípios e valores com opiniões. Com subjetivismo.

E, finalmente, consideraria como adversário um aspeto que infelizmente não é só da família, é da sociedade em geral, que é uma tendência para a indiferença perante o outro. A indiferença é aquela coisa que se diz coletivamente: Isto não é comigo, é com os outros! Não tem nada a ver com isso. É o indiferentismo. Havia um filósofo francês que dizia que Deus não teme os opositores mas teme os indiferentes. É uma maneira engraçada de referir isso. Já reparou que o contrato de casamento é o contrato mais fácil de anular? A parte legal, porque a outra parte do casamento católico não é assim tão fácil de anular. Mas há cada vez menos casamentos, matrimónios católicos. Como católico, até prefiro que haja menos casamentos católicos, mas que sejam bons casamentos católicos em vez de serem apenas festas sociais para os outros verem.

O livro defende algumas perspetivas conservadoras, muito contestadas, sobre a mulher. Como é que vê o papel da mulher na sociedade?

Eu acho que uma das grandes evoluções das últimas décadas foi o papel da mulher na família, na sociedade e na atividade económica e em tudo. Eu sou incondicional defensor da igualdade entre homens e mulheres. Eu não gosto de dizer igualdade entre géneros, porque géneros é uma coisa gramatical.

É uma total igualdade de oportunidades que, aliás, às vezes devagar demais, é certo, tem sido procurada alcançar. Até, penso, com uma grande harmonia ou, pelo menos, coincidência de pontos de vista de partidos mais à direita ou mais à esquerda.

Isso, no entanto, não retira um ponto que me parece, no plano dos valores e no plano de uma opinião, que é a minha: Uma coisa é a total igualdade plena entre homens e mulheres, desde logo na família, nos direitos e nos deveres; Outra coisa é eliminar ou anular as positivas diferenças que há entre ser homem e ser mulher.

Ou seja, o mundo ideal seria plena igualdade entre homem e mulher, sendo que essa igualdade deve aproveitar o que de melhor o homem pode oferecer e o melhor que a mulher pode oferecer. Ou seja, não anular a diferença, para não precisar da expressão de diferença. Porque há aspetos que são da natureza em que uns fazem melhor e outros fazem menos bem. É nesse sentido. Mas, quanto ao resto, não tenho qualquer dúvida.

Este livro propõe uma ideia conservadora sobre família? O que é a família tradicional?

Eu não gosto da expressão família tradicional. Aliás, é curioso que o livro tem como subtítulo Entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade. Temos de ter uma visão arejada, algo conservadora, mas também atenta às modificações que a própria sociedade vai impondo.

Então, prefiro, em vez de família tradicional, usar a expressão família natural. Ou seja, a família constituída por casal, homem e mulher, com filhos que podem ser naturais ou adotados. É aquilo que eu chamo de família natural.

Quando nós privilegiamos a família natural, eu não estou a deixar de considerar outro tipo de ajuntamentos familiares, de agregados familiares, que não tenham este modelo. Aqui não se trata de concordar ou discordar. Trata-se de ter respeito por essas situações ou não ter. E eu tenho respeito por elas.

Agora, se importar qual é a minha posição ideológica, doutrinária, da situação de conceito de família, que está mais de acordo com aquilo que eu penso que importa para a sociedade, é a da família natural.

São dois aspetos diferentes. Até por uma razão de natureza quase pragmática. Os países da Europa, e em particular Portugal, muito acentuadamente, têm uma grave crise de natalidade. Ora, a natalidade assenta sempre na ideia da família natural. E quanto mais ela for promovida, quanto mais for estimulada, quanto mais for considerada nas políticas públicas, e já podemos também falar nisso.

Mais, podemos contribuir para atenuar o efeito negativo da demografia e do envelhecimento muito acentuado da sociedade portuguesa.

Ligando os problemas demográficos que refere ao conceito de família natural, que esclareceu, como é que vê a opção de ser mãe solteira, que cada vez mais mulheres seguem para constituir família?

Pode ser considerada, em tese, do meu ponto de vista, uma perspetiva admirável. Uma mulher que quer ter um filho.

Sente que as políticas públicas também podem condicionar a natalidade tanto ou mais do que o próprio conceito de família natural?

As duas coisas são complementares. Agora, as políticas públicas, em primeiro caso, são sinalizadoras, ou devem ser sinalizadoras, da importância que o Estado, a organização política, dá ao conceito de família.

Depois, repare, a família neste momento está metida entre três polos dentro do que eu chamo modernismo. Uma é o Estado. Outra, é o Mercado. E, por fim, o individualismo, de que já falei.

E, nesse sentido, há pouco referi a questão do mercado e da economia. Atenção, nós vivemos numa economia de mercado, mas não vivemos numa sociedade de mercado. São coisas bem diferentes. E, portanto, a ideia da família não pode ser vista numa lógica de sociedade de mercado, em que nós mercadejamos valores, princípios, permutas, disto e daquilo. Não. Uma coisa é a economia de mercado, onde há regras para isso.

Acho que o nosso Estado ainda continua a ser muito deficitário no apoio à família. Em primeiro lugar, porque, repare bem, qualquer coisa que se faça neste país tem de ter estudos de impacto ambiental, estudos de impacto tecnológico, estudos de impacto financeiro e orçamental, etc. Não há medidas em que se faça um estudo do impacto familiar. Por exemplo, as questões da habitação.

Só para dar um exemplo que está em cima da mesa. As coisas da habitação. As políticas fiscais. Por exemplo, não faz sentido que uma família que tenha os seus ascendentes em casa não tenha vantagem fiscal sobre aqueles que têm os seus ascendentes num lar de idosos.

O Estado tem que dar sinais desses. Hoje, é um dos grandes problemas de idosos, e quando nós falamos da família, não falamos só das crianças, falamos dos mais velhos.

No livro também é abordada a questão da permanência de idosos em casa, a cuidado dos familiares, que se tornam cuidadores informais.

O lar é como a greve. É o último recurso. Mas não pode ser o primeiro expediente. E o Estado pode dar sinais nesse sentido e com benefícios fiscais. No fundo, são os cuidadores naturais. Uma estatística que ainda há poucas semanas etive a estudar indica que mais de 500 mil pessoas com mais de 65 anos de idade vivem sozinhas. Não é uma questão de solidão. É uma questão de isolamento. A solidão, às vezes, nós próprios a procuramos. O isolamento é que é a doença da solidão.

E o aumento que se verificou no início deste século para o ano de 2022, que são as últimas estatísticas que nós temos, de acordo com os censos, significa que em cada dia do calendário durante estes 20 anos 30 idosos ficaram a viver sozinhos.

Ora, isto é um problema, não é só o valor das pensões. É um problema em si. Se nós queremos uma sociedade harmoniosa e, lá está, com a componente familiar, temos que dar sinais nesse sentido.

Outro exemplo: Há centros de dias para idosos. Mas eu também os promovi quando fui secretário de Estado em 1980, mas 40 anos depois os velhos não precisam de centros de dia. Precisam de centros de noite. Porque durante o dia não devem ser arrancados do seu habitat natural, da sua vizinhança, das suas companhias. Durante a noite é que têm medo, é que têm insegurança.

Os instrumentos que o Estado tem ao dispor para as políticas familiares vão variando. Não só porque o conceito de família também se altera, mas porque as necessidades das pessoas e das famílias também é diferente.

Na política fiscal também se pode fazer muita coisa, como esta que eu referi, ou como o maior eu sou favorável à tributação não apenas pelo fator conjugal, mas pelo fator familiar. Ou seja, dividir o rendimento não apenas pelos cônjuges, mas pelos filhos menores.

Podia falar de outras políticas. Por exemplo, na política da Segurança Social, até porque falou no rendimento social de inserção, é importante que no futuro as políticas, as prestações sociais não tenham exclusivamente em conta o beneficiário, o indivíduo, mas a sua componente familiar. Avançou-se nesse aspeto, com o complemento solidário de idosos, com o rendimento social de inserção, mas pode-se avançar ainda mais.

De maneira que a família seja uma componente para aferir a necessidade e o montante das prestações que a Segurança Social dá às pessoas. Há muito também nas políticas públicas a fazer e há a questão da educação. Infelizmente, a escola usurpou completamente a função educacional às famílias.

Não se trata de ser pública ou privada, a escola em geral. A escola é importantíssima para a instrução e para a educação das crianças e dos jovens. Mas se não há educação em casa de pouco vai sair o que se está aprendendo na escola.

Ou seja, o primeiro motor da educação é a família. Melhor ou pior, e não é por ser catedrático ou analfabeto. O analfabeto pode educar os meus filhos como catedrático. Através do exemplo. O exemplo é a autoridade do merecimento. Através do exemplo e através da boa conjugação entre direitos e obrigações. Entre direitos e deveres.

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