Esteve em Lisboa para participar na 6.ª Conferência de Lisboa, com o tema Mundo Dividido . O grau de divisão do mundo vai depender de quem ganhar as presidenciais de novembro nos Estados Unidos? Não, acho que o mundo fez um bastante bom trabalho a dividir-se sozinho, e isso vai continuar. A verdadeira força motriz é que, por razões diferentes, China, Rússia, Irão e Coreia do Norte querem mesmo mudar a forma como o mundo funciona. E alguns deles gostariam de mudar as suas fronteiras e anexar países vizinhos. E há muitos outros países que não querem que isso aconteça. E isso vai continuar, independentemente de quem ganhar as eleições americanas. .Então não importa se é Donald Trump ou Kamala Harris o próximo presidente dos EUA? Em termos de divisão do mundo, não. O mundo vai continuar dividido..E na forma como o mundo lida com a América? Mais uma vez, vai haver reações diferentes em partes diferentes do mundo. A Índia provavelmente vai ficar feliz com Trump, mas também está feliz com Biden, por isso consegue lidar com qualquer um. O Japão, Taiwan e a Coreia do Sul ficariam nervosos com Trump, mas seriam rápidos a chegar a um entendimento. Acredito que as relações com o México provavelmente serão comerciais sob Trump ou Harris. A Europa vai realmente odiar a ideia de Trump. A sua eleição iria colocar a Europa numa espécie de crise política em que ninguém saberia como lidar e todos ficariam meio tontos. Mas no final, vemos os resultados eleitorais, vamos para a cama, acordamos na manhã seguinte e continuamos a ter coisas para fazer. Por isso acho que vamos encontrar uma solução. Os europeus conseguem ser muito pragmáticos quando tem de ser. Além de que continua a ser verdade que a Europa não se consegue defender sozinha, sem a ajuda dos EUA. E há casos em que a Europa precisa de se defender. .Estamos a falar da Ucrânia. No que se refere a esta guerra, parece pouco provável que as coisas continuem como dantes se Trump ganhar… Uma coisa a perceber é que, quaisquer que sejam as intenções de algumas das pessoas que fazem a política, iremos continuar a libertar ajuda suficiente para a Ucrânia para mantê-la a lutar, mas não a suficiente para vencer. E a ideia é que, mais cedo ou mais tarde, os ucranianos se cansarão de travar uma guerra que não podem vencer e estarão dispostos a aceitar algum tipo de compromisso de paz com Putin. Essa é a política. É muito cínico. Mas entretanto, enquanto tivermos esta política, andamos ali à volta, parecemos amigos da democracia, idealistas, seres humanos maravilhosos, que realmente se preocupam com a Ucrânia. E essa é uma política desprezível. Pode ser necessário sermos realistas, mas a combinação com a hipocrisia é francamente revoltante. .E essa atitude vem tanto da Europa como dos EUA? Sim, estamos de mãos dadas nisto. E temo que os ucranianos saibam disso. Acho que os russos sabem disso e os ucranianos sabem disso. Na Ucrânia, é provável que se sintam traídos. E dirão que estavam a fazer o seu melhor, mas que o Ocidente os dececionou. E será muito improvável que Putin dê uma boa paz aos ucranianos. Porque neste momento eles parecem estar a perder a guerra. E o Ocidente, mesmo que Harris seja eleita, quantos mais pacotes de ajuda de 60 mil milhões de dólares para a Ucrânia é que o Congresso irá aprovar? Não posso dizer esse número. Putin também vê isso. E o seu objetivo é enfraquecer a União Europeia e enfraquecer a relação transatlântica. Para que a Rússia possa regressar à sua posição de grande potência na Europa, para que nenhuma decisão importante na Europa possa ser tomada sem que a Rússia aprove. Esse é o seu objetivo. Então acho que ele vai pressionar. A ideia de Trump, até onde se sabe, é dizer a Putin: olha, tu decides. Faz um acordo agora ou, se recusares, darei à Ucrânia muito mais do que Biden alguma vez deu. Isso é o que ele parece estar a pensar dizer. Mas vai acontecer? Mudaria alguma coisa? Não sabemos..Não acredita então que o Ocidente vá mudar a resposta cautelosa que tem dado quando a Ucrânia pressiona para usar as armas que lhe fornecem contra solo russo? Acho que vamos continuar a adiar e adiar até ser demasiado tarde e só então o faremos. Tem sido a nossa política até agora, porquê mudar? Só porque não está a resultar, porquê mudar?.E do lado russo, acredita na ameaça nuclear ou acha que é exagero? Acho exagerado. A Rússia tem armas nucleares desde que a União Soviética as desenvolveu em 1949. Nunca as usaram. Essas armas nunca foram usadas contra um Estado que tivesse armas nucleares ou que tivesse amigos que as tivessem. Isto é verdade. Mas por outro lado, porque é que Putin o havia de fazer? Está a ganhar a guerra. Porque faria algo assim? Além disso, se ele quiser criar problemas para o Ocidente, tem muito mais opções. Uma delas, por exemplo, é que poderia simplesmente enviar uma pen para Teerão com os detalhes técnicos de como os iranianos podem transformar o seu urânio enriquecido numa bomba nuclear. Então, em vez de levar um ano ou assim, levaria algumas semanas. Ele pode fazer isso. Em termos de distrair o Ocidente e desacreditar os seus oponentes, imagine o que seria se o Irão fizesse um teste nuclear. Então por que diabo é que Putin passaria por todos os aborrecimentos de usar uma bomba atómica na Ucrânia? Talvez o faça, mas eu se fosse ele não faria. Tem opções melhores. Agora, se estivesse a perder a guerra e a Ucrânia estivesse realmente a invadir a Rússia, não apenas junto à fronteira, mas a marchar em direção a Moscovo, isso seria diferente. Mas não é aí que estamos..Falou do Irão, o que nos leva à situação no Médio Oriente. Podemos dizer que o Médio Oriente é hoje o melhor exemplo de uma guerra por procuração, com o Irão por detrás de grupos no Líbano, em Gaza, no Iémen, também na Síria? Bem, nós realmente não demos resposta quando o Irão assumiu o poder. Tornou-se uma potência dominante na Síria, entrincheirou-se no Iraque e depois transformou os Houthis de um grupo muito desorganizado numa força formidável. E não fizemos nada. Os futuros historiadores dirão que isso não foi muito inteligente. E se o Irão conseguisse agora uma bomba nuclear seria um desenvolvimento muito sério. Penso que os israelitas acreditam que se os iranianos tivessem uma arma nuclear utilizá-la-iam contra Israel, mesmo que Israel tivesse a capacidade de retaliar. É um conjunto de cenários muito interessante..É esse receio de que o Irão possa vir a ter a bomba nuclear mais rapidamente do que se espera que explica que Israel esteja a ser cauteloso na resposta aos ataques de que foi alvo por parte de Teerão? As pessoas esquecem que Bibi [como é conhecido Benjamin Netanyahu] tem sido historicamente muito cauteloso quando se trata de enviar tropas para outros países. E até ao 7 de Outubro, ele estava numa atitude de vive e deixa viver com o Hamas. Vocês ficam do vosso lado, eu fico do meu lado e nem vou tentar impedir o Qatar de vos enviar dinheiro. E o mesmo com o Hezbollah. Agora, obviamente, algo mudou nos cálculos de Bibi. Penso que é uma combinação de o Irão estar a tornar-se mais forte e os EUA parecerem estar a tentar afastar-se do Médio Oriente. Israel sente que precisa de mostrar dissuasão contra o Irão. Mas também precisa de mostrar aos sauditas, aos koweitianos e aos emiratis que Israel pode realmente ajudá-los contra o Irão, que eles temem tanto quanto os israelitas. Portanto, Israel tem usado as informações dos seus serviços de inteligência contra o Hezbollah. O problema é que quando as usam deixam de as ter. Tem sido eficaz. Mas esta é a parte fácil. O que acontece a seguir? Uma invasão terrestre do Líbano em larga escala? É difícil imaginar como é que isso pode correr bem para Israel. Já com os ataques aéreos, na primeira semana atacam-se os melhores alvos. Na segunda, os menos bons, etc, etc. Portanto os primeiros ataques foram os mais eficazes. Mas o que se segue? Atacam o Irão? Os argumentos que se ouvem oscilam entre se deviam atacar as instalações nucleares ou as infraestruturas petrolíferas? Quase todos os poços de petróleo e a capacidade de refinação do Irão estão concentrados numa pequena área do país. Se destruírem essa infraestrutura, o petróleo arde e é possível cortar-lhes esta fonte de rendimento durante muito tempo. Biden teme que Teerão reaja atacando os campos de petróleo sauditas. E isso faria os preços do petróleo disparar. Ora não é o que se quer mesmo antes de umas presidenciais nos EUA. Além da sensação de caos no mundo que iria provocar..O mundo está focado na Ucrânia e no Médio Oriente, mas Taiwan pode ser o próximo conflito mundial? Honestamente não sei. Acho que se Xi Jinping pensasse que podia tomar Taiwan rápida e facilmente, e que o mundo não responderia de uma forma que realmente prejudicasse a China, o faria num piscar de olhos. Portanto, o que temos de pensar é como fazê-lo sentir que talvez não ganhe se o fizer. E também fazê-lo sentir que a resposta do resto do mundo seria devastadora para a China. Essas são as coisas nas quais temos que trabalhar. Permitimos que a nossa força militar se deteriorasse em Taiwan e arredores. Mas ainda temos alguns ativos muito importantes. Os nossos submarinos, em particular, têm algumas vantagens reais. Os chineses têm um problema: se quiserem conquistar Taiwan, terão de mover um exército de pelo menos cem mil pessoas ao longo de 110 milhas - ou seja, 180 quilómetros ou algo assim - de água. E isso é uma coisa difícil de fazer. Vimos no Mar Negro que a Ucrânia, com drones e mísseis, foi capaz de manter a frota de superfície russa bloqueada nos seus portos. Isso é muito interessante. E sei que nos EUA muitas pessoas estão a pensar muito sobre como conseguir frotas de drones. E é claro que os chineses estão a pensar em como podem ter drones de contra-ataque. Portanto, drones, submarinos etc. Penso que há ainda outras coisas que poderíamos fazer que aumentariam a convicção da China de que invadir Taiwan é um erro..Ainda sobre a China, acha que quer ser a líder do chamado Sul Global, ou tem ambições bem maiores do que isso? Eu acho que o Sul Global é demasiado pequeno para a China. Os chineses querem ser a principal potência do mundo. Quem quer ser a principal potência da metade pobre do mundo? Por que não do mundo inteiro? Acho que é assim que eles veem as coisas. Gostariam de estar no centro da civilização. E mesmo as suas ambições regionais, se eles tomassem Taiwan e forçassem o Japão e a Coreia a tornarem-se, se não exatamente satélites chineses, mas a estar do lado da China, o seu poder económico, o seu poder militar e o seu poder tecnológico seriam tão grandes que a partir daí poderiam ascender a um domínio global crescente. Portanto, Taiwan é realmente importante..Muitos analistas afirmam que o mundo hoje está mais perigoso do que no tempo da Guerra Fria. Concorda com esta afirmação? Bom, antes de mais nada, a Guerra Fria foi um período muito longo. E houve momentos em que foi francamente entediante. Houve momentos de crise e houve degelos. Assim, durante a crise dos mísseis em Cuba, muitas pessoas pensaram que íamos todos morrer na semana seguinte numa guerra nuclear. E houve momentos em que os tanques dos EUA e da União Soviética ficaram frente a frente em Berlim. Portanto, houve momentos na Guerra Fria que foram muito, muito assustadores. Mas a maior parte era muito mais discreta. Acho que estamos agora na zona intermédia, não é tão mau quanto a crise dos mísseis de Cuba, mas pode vir a ser - bastaria apenas uma manchete bombástica sobre a China ou um teste de bomba nuclear no Irão ou, digamos, um avanço do Kremlin com os tanques russos a ir em direção a Kiev muito rápido. Portanto, estamos hoje apenas a um instante de crises à escala dos piores momentos da Guerra Fria.