João dos Santos, o bom doutor
Em miúdo foi expulso do Liceu Padre António Vieira, em Lisboa, por um confronto que teve com o reitor no recreio. Durante 40 anos, Luís dos Santos não fez ideia de que o mesmo reitor chamara antes o seu pai para falar sobre o incidente, e ficou muito escandalizado quando este lhe disse que "tinha muito orgulho de o filho ter sido solidário com o amigo".
O pai era o médico, psicanalista e pedagogo João dos Santos (1913-1987) e esta foi a história que Luís dos Santos, engenheiro há 50 anos a viver em Inglaterra, contou quando lhe perguntámos como ele era. "Queria apoiar-me, mas esta coisa de ser mal-educado não é para fazer todos os dias. Eu tinha de aprender a lição."
A lição de João dos Santos, essa, é longa e ainda hoje escutada (quem o segue dirá que não o suficiente), chamando a atenção para a criança, sempre ela, desde logo lembrando que "o segredo do homem é a própria infância". Depois, recusando aquilo a que chamava "a educação oficial a partir do berço", convidando quem o ouvia a admitir "que a aprendizagem não pode ser exclusivamente racional", que é preciso deixar a criança andar por si, olhar, ouvir e sentir por si.
"Doutor" João dos Santos, como é conhecido, começou por ser professor de Educação Física nos bairros populares de Lisboa, e só depois se formou em Medicina. Trabalhava já no Hospital Júlio de Matos, em psiquiatria, quando em 1945 foi um dos subscritores do documento que, dinamizado pelo Movimento de Unidade Democrática (MUD), pedia eleições livres a Salazar. Foi a partir daí proibido de exercer em qualquer hospital público. Não se consegue, por isso, deixar de pensar na sua experiência quando se lê passagens da sua obra escrita como: "Desde jovem compreendi que a educação e a saúde tinham que ver com a democracia e que eram incompatíveis com a ausência de liberdade."
"Tive uma infância cheia de disponibilidade, amor e verdade, dele e da minha mãe." Luís dos Santos, o mais novo dos seus quatro filhos, recorda como foi determinante para o pai a ida para Paris em 1946, no rescaldo da II Guerra Mundial, onde toma contacto "com crianças mutiladas, órfãs de guerra, que lhe deram grande força na vida e conhecimento. Veio para Portugal cheio de força e conseguiu fazer uma data de coisas". A lista que o comprova é longa.
Criou - sempre acompanhado - a primeira secção de higiene mental num centro de assistência maternoinfantil, os centros psicopedagógicos do Colégio Moderno e de A Voz do Operário, o Centro Infantil Helen Keller (figura com quem conviveu), a Liga Portuguesa dos Deficientes Motores, a Associação Portuguesa de Surdos. Foi diretor do Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa. Voltou ainda ao Júlio de Matos para dirigir as clínicas infantis, foi professor universitário, e deixou uma vasta obra escrita, da qual se destacam Ensaios sobre Educação ou A Casa da Praia: O Psicanalista na Escola. A Casa da Praia, hoje Centro Dr. João dos Santos, dedicada à saúde mental e juvenil, é, aliás, uma das suas heranças.
"A abrangência da sua atuação tem grandes vantagens, mas resulta também num fenómeno curioso que é que os psicanalistas acham que o verdadeiro João dos Santos foi o psicanalista que eles conheceram e com quem trabalharam, os psicólogos acham que o verdadeiro João dos Santos foi o psicólogo que eles conheceram e com quem trabalharam, os professores acham que o verdadeiro João dos Santos foi o pedagogo que eles conheceram e com quem trabalharam", conta ao DN Luís dos Santos.
Como pai, diz, "ouvia-nos. Estabelecia limites para os filhos, com grande amor e verdade." Luís dos Santos acrescenta, aliás, que direta e indiretamente foi João dos Santos quem lhe deu todas as pistas para educar os seus próprios filhos. Como qualquer pai, mas a quem acrescesse ainda uma obra (também escrita) singular.