Lembra-se dos Onda Choc? História do jovem marxista-leninista que os criou
Heduíno Gomes tem quase 75 anos e não gosta de aparecer em fotografias. Uma mania que lhe ficou dos tempos em que era jovem comunista num país onde era proibido ser-se comunista. Habituou-se a andar na sombra. E foi assim também que fez carreira na música. Nos bastidores. A ser a mão que empurra projetos como os Onda Choc, o grupo musical infantojuvenil que, nos anos 1980 e 1990, adaptava para português os sucessos do momento e pôs uma geração inteira a cantar Ele É o Rei, Era Um Biquíni Pequenino às Bolinhas Amarelas ou Ela só Quer, só Pensa em Namorar.
Antes, muito antes dos Onda Choc, a música entrou na vida de Heduíno pela mão do padre Marvão, que vinha duas vezes por semana dar aulas de Música e ensaiar o coro ao colégio de Ferreira do Alentejo. Ele, rapaz nascido em Ervidel, tinha 11 anos e uma voz afinada com que entoava o cancioneiro alentejano.
"Mais tarde, o meu pai pespegou comigo no colégio de Tomar, que era para onde iam os jovens com problemas de comportamento", recorda. Heduíno esteve lá dois anos, os únicos em que, diz, foi bom aluno. "Havia muitos maus alunos, mas quem quisesse estudar ali conseguia. Havia disciplina, tínhamos o tempo muito organizado." E havia o orfeão, com 120 elementos e um repertório maioritariamente clássico. Aos 15 anos, Heduíno era primeiro tenor e até foi cantar com o orfeão num programa da RTP: "Foi a minha única participação artística num programa de televisão."
As primeiras conversas sobre política começaram ainda nos tempos do liceu, em Beja. Já chegou ao Instituto Superior Técnico, em Lisboa, "com a virose", que é como quem diz, com o bichinho da política. "Em vez de estudar Engenharia Eletrotécnica, estudei o marxismo-leninismo", lembra, entre risos.
"Entrei no PCP, era o que havia na altura, em 1961. Vivi a coisa intensamente, dedicado de alma e coração à causa." A primeira vez que fez distribuição de propaganda clandestina foi nas vésperas das eleições para a Assembleia Nacional. Heduíno lembra-se de que estava uma noite chuvosa e que os panfletos ficavam colados nos vidros dos carros. "Se formos presos, tu não me conheces nem eu te conheço", disse-lhe Crisóstomo Teixeira enquanto subiam da Avenida Almirante Reis para a Graça. Entre outras atividades, fez parte da associação de estudantes do Técnico e lançou um boletim chamado Binómio, que se tornou famoso no meio académico. "Eu pintei o caneco. Só não fui dentro porque o meu nome é esquisito. Houve um gajo que me denunciou mas no relatório o pide escreveu Eduardo em vez de Heduíno."
Estava a ler jornais, sentado à mesa do café Pão de Açúcar, perto da Fonte Luminosa, com o seu controleiro, quando começou a desconfiar do comunismo soviético: "Havia uma notícia sobre uma passagem de modelos na Rússia. A nossa ideia de comunismo não se coadunava com aquilo." E acrescenta: "Em 1964 houve uma dissidência no Partido Comunista: havia a linha de Cunhal e havia a linha do Francisco Martins Rodrigues, que fundou o Comité Marxista Leninista Português [mais tarde PCP-ML]. Optei por este comunismo bacteriologicamente puro, era um partido comunista como deve ser, pensávamos nós."
Um dia, recebeu instruções para se "pisgar". Tinha sido denunciado. Pagou por um passaporte falso e apanhou o avião na data combinada com destino a Bruxelas, na Bélgica. "Mas a revolução estava em Paris e foi para lá que eu fui." Trabalhar para o PCP-ML, pois claro, ao mesmo tempo que arranjava uns biscates para sobreviver. "Fui cozinheiro, trabalhei num armazém de supermercados, fui ardina. Mas mesmo na atividade política organizei vários coros." Andava sempre com a música atrás. E foi assim, em França, na década de 1970, na atividade partidária, que conheceu Ana Faria, sua mulher até hoje.
Exilado, mandava por correio textos marxistas-leninistas que eram publicados no Diário do Alentejo. "Isto na tal longa noite fascista. É preciso ser ignorante ou estar de má-fé para chamar àquilo fascismo", diz agora, quando olha para trás. Mas nessa altura ainda não pensava assim. "Eu vinha do Alentejo e via aquela pobreza toda, achava que a culpa das condições de vida das pessoas era toda do governo da altura. Estava a ver só aquele fotograma, não via o filme completo. É preciso recuar na história para perceber a pobreza de Portugal e saber como Salazar fez muita coisa por este país. Mas eu era um ignorante. Havia jovens espertalhões, eu era dos parvos."
Ainda antes da "desmarxização" - Eu tomei duche. Saiu tudo.", - voltou a Portugal após o 25 de Abril e foi no âmbito da secção cultural do partido que criou o Terra sem Amos, depois chamado Terra a Terra, que era um grupo de música popular, que cantava temas de vários cantos do país. Ana Faria era a principal voz feminina e Heduíno assumia o papel que a partir daí seria o seu: "O meu papel foi sempre de diretor de produção. Que em música corresponde ao realizador do cinema. Às vezes chamavam-me produtor, mas erradamente, porque o produtor é o que entra com o dinheiro, e eu dinheiro não tinha." Os primeiros dois discos dos Terra a Terra foram um sucesso, mas para ele aquilo "ainda não era uma coisa comercial, era uma atividade política".
"Em 1980 fechámos o partido." Foi um começo um novo ciclo. "Entretanto, eu e a Ana iniciámos a nossa produção musical." Os três filhos eram pequenos: Nuno, João e Pedro, o último nascido em 1979, era ainda um bebé. "Ele não queria dormir, só queria estar ao colo. E a Ana para o embalar pôs-se a cantarolar uma música clássica, do Tchaikovsky, daí nasceu a ideia da canção do Pedrito que não quer fazer oó, quem o habituou mal foi a avó. Aliás, do Brincando aos Clássicos, poucas canções não são histórias concretas. Até está lá o Toino Vai Dar Palha ao Burro, que era uma história que a minha mãe me contava de um tipo lá de Ervidel."
O projeto tinha tudo para dar certo. Bastava-lhe olhar para as músicas infantis de então: "Eram todas uma desgraça, era uma estupidificação enorme das crianças." Do Brincando aos Clássicos passou para os Queijinhos Frescos e daí a pouco, em finais de 1986, surgiam os Onda Choc. "O primeiro grupo de miúdos eram quase todos da Academia de Santa Cecília, onde andava o nosso filho mais velho. Depois começámos a fazer testes, não entrava quem queria."
As letras eram de Ana Faria, mas era Heduíno que fazia a roda girar. Estabelecia os critérios para escolher os cantores, organizava os castings, ajudava a escolher o repertório, dirigia a gravação em estúdio. "Eu era um chato, obrigava-os a repetir muitas vezes. A Ana era boazinha, eu era o polícia mau. Tinha de ser", lembra. "Quem estava a dirigir aquilo era um tipo com a escola do marxismo-leninismo. Tinha de haver ordem e disciplina.
As coisas não eram feitas ao acaso." Era ele que escolhia quem cantava qual música - "As miúdas arranhavam-se para ter as canções melhores, havia lágrimas, mães que me telefonavam a pedir "ponha lá a minha filha"." Também era ele quem tirava as fotografias para as capas dos discos, quem organizava os espetáculos e as digressões, em Portugal e no estrangeiro. "Levava os miúdos a visitar as cidades, a ver os museus. Obrigava-os a comer." Mas o ambiente era de festa. Todos os que passaram pelos Onda Choc recordam esse período como um dos melhores das suas vidas. "Foram 13 anos muito intensos. Passaram pela Onda Choc uns 200 miúdos."
Houve outros grupos - os Jovens Cantores de Lisboa, as Popeline, os Ultimatum - mas nenhum teve o impacto dos Onda Choc. "Se for ver o meu currículo, fiz 60 LP, 26 foram dos Onda Choc", diz, sem esconder o orgulho. Ainda hoje, é ele que detém a marca e tem mil projetos na cabeça e no computador. Mas os tempos mudaram. "Os miúdos já querem outras coisas."
Ele mantém o inconfundível sotaque alentejano, mas também mudou, depois do tal "duche ideológico". "O vírus da política transmutou-se mas não morreu", afirma. Tornou-se militante do PSD com Mota Pinto, foi membro da Comissão Nacional e andou "a lixar a vida ao cavaquismo". Continua ativo e recusa calar-se perante o "desgoverno" de um país dominado pela corrupção e pelos "revolucionários de teclado". De vez em quando ainda há quem o trate por Vilar, o pseudónimo dos tempos do comunismo. Mas ele responde sempre: "Vilar só se for o Renegado Vilar. Esse sou eu."