Ficar em casa para aprender a pensar: há mais de 600 crianças em Portugal no ensino doméstico

Evan é um dos que "frequentam" o ensino doméstico e que hoje, quando milhares voltam às aulas, pode acordar sem despertador e aprender ao seu ritmo
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Evan tem 8 anos e durante o mês de agosto leu oito livros "gordos", como conta na página de Facebook que criou para falar dos seus livros preferidos. É fascinado com tudo o que tenha que ver com a natureza, sabe coisas extraordinárias sobre animais e plantas e no futuro sonha ser cientista. Evan não anda na escola. É uma das mais de 600 crianças que "frequentam" o ensino doméstico em Portugal e que, por isso, esta noite vai dormir descansado, sem se preocupar com a escola, e amanhã acordará sem despertador e poderá passar o dia descalço, entre os seus livros e as brincadeiras com os irmãos.

Evan andou na creche por pouco tempo quando tinha 3 anos. "Ele ficava triste e muitas vezes choramingava. Eu ficava com o coração apertado", lembra a mãe, Anastasia. Não precisou de muito mais para tomar a decisão de ficar em casa com os filhos e ser responsável pelo seu ensino. "No início os dias pareciam enormes, não sabia o que fazer com eles e achava que tinha de estar sempre a fazer alguma coisa. Mas isso não é verdade. Não temos de estar sempre a fazer coisas e não temos de fazer tudo com eles. Temos de deixá-los explorar a imaginação. E depois eles crescem e tornam-se cada vez mais autónomos."

Cinco anos depois, Anastasia e Pedro não poderiam estar mais felizes e convictos de que tomaram a decisão certa. O filho do meio, Tristan, tem 5 anos e já leu todos os livros de Harry Potter. Aprendeu a ler sozinho quando ainda não tinha 3 anos, mas a sua verdadeira paixão é a matemática. Evan e Tristan não sabem o que são metas curriculares e nunca fizeram um teste mas sabem fazer pão, falam e leem em português (a língua do pai), russo (a língua da mãe) e inglês, jogam xadrez melhor do que muitos adultos. O irmão mais pequeno, Artur, tem 2 anos e para já parece mais interessado em brincar e pintar.

"O mais importante é que aprendam a pensar", diz Pedro, que é gestor e é o único na casa que tem horários a cumprir. "Queria que eles não perdessem a curiosidade", acrescenta Anastasia. "Todas as crianças são curiosas, é uma coisa natural. Nós não temos de fazer nada. É só estar com eles e responder quando nos fazem perguntas. E se não sabemos, procuramos. E ensinamo-los a procurar as respostas." A palavra ensinar não se aplica aqui. As aprendizagens são feitas à medida dos interesses e das curiosidades de cada um. Com muitos livros (mas não manuais escolares), viagens, brincadeiras, conversas e experiências - essa é a base de tudo. Depois ainda há as atividades "geralmente chamadas extracurriculares", como a música, as artes marciais, os escuteiros. "E dois dias por semana temos encontros com outras famílias do ensino doméstico. O nosso recorde é oito horas a brincar no parque!"

Nem todas as famílias que optam pelo ensino doméstico tomam uma opção tão radical quanto Anastasia e Pedro. A poucos dias do início do ano letivo, Maria, Marta, Joaquim e Caleb sentam-se em volta da mesa da sala a apagar os manuais que vão ser reutilizados enquanto ouvem música. Todos eles sabem qual o ano que vão frequentar e em cada ano fazem um planeamento daquilo que vão estudar e de como vão trabalhar. Também nesta família a filha mais velha, Maria, que tem 14 anos, chegou a frequentar brevemente o ensino regular até, em 2013, os pais, Ana Rute e Tiago Oliveira Cavaco, optarem pelo ensino doméstico. "Ao início é um pouco assustador", conta a mãe. "Estivemos quase dois anos a decidir. Falámos com muitas pessoas. Ao nosso redor toda a gente faz de uma determinada maneira e ou nós tínhamos muita firmeza naquilo que íamos fazer ou não ia dar. Definimos aquilo que não queríamos fazer e aquilo de que gostávamos e decidimos arriscar." Todos os anos, a família faz uma avaliação e decide se vale a pena continuar. "Para nós não é um caminho de sentido único."

Na altura, a decisão foi impulsionada pelo facto de haver outras famílias amigas que também queriam uma escola diferente. Juntos, criaram um pequeno centro de ensino doméstico onde cada pai é responsável por uma área diferente. Neste momento, o projeto tem seis famílias e menos de 20 anos alunos do 1.º ao 6.º ano. Unem-nos os valores cristãos e a ideia de que a escola não é tanto o sítio onde se vai "receber" conhecimentos mas antes uma comunidade onde se treina o pensamento. "Não é aquela ideia clássica da pessoa mais velha que está a ensinar a mais nova. À exceção da alfabetização e daqueles conceitos básicos que são feitos com a ajuda de um adulto, numa fase muito precoce da vida começa-se o treino para a autonomia e para saber buscar o conhecimento a qualquer lado. Treinar para pensar é o mais importante."

"Não sou contra o sistema, mas havia algumas coisas que nós sentíamos que amputavam as crianças. As pessoas têm a ideia de que quem opta pelo ensino doméstico quer proteger os filhos. Mas, na verdade, nós queremos é ter uma visão maior", explica Ana Rute. A "frequentar" o 9.º ano, a Maria está pelo terceiro ano em casa e estuda sozinha, com a ajuda dos manuais e da Escola Virtual. Organiza o seu tempo e o seu trabalho. Sem dramas. Quando tem dificuldades fala com os pais ou com outros adultos. As aulas de espanhol, por exemplo, são dadas por Skype por uma amiga da família.

"As pessoas que não sabem muito sobre homeschooling acham que não vão conseguir porque não têm o domínio das matérias todas. Mas nós não temos de fazer tudo", explica Anastasia. "Só temos de saber como procurar e ajudá-los a procurar a informação. E depois contamos com a ajuda da família, dos amigos, da comunidade." As crianças não passam o dia fechadas em casa, isoladas. Têm irmãos e amigos, participam na vida da família. "Nós vivemos no mundo real e temos muitas pessoas à nossa volta. Existe o mito de que a socialização dos miúdos tem de ser feita com os pares, com os da mesma idade", diz Ana Rute. "Mas a socialização pode ser feita de muitas maneiras."

A liberdade dos alunos em ensino doméstico termina no final de cada ciclo, quando têm de fazer exames em todas as disciplinas e cumprir metas curriculares iguais às dos alunos do ensino regular. Na família de Ana Rute e de Tiago esses momentos têm sido vividos com tranquilidade e boas notas. "Não os pressionamos e até costumamos tirar férias nas semanas antes dos exames", diz a mãe. "Mais importante do que as notas é a atitude deles, queremos que sejam responsáveis e confiantes."

Anastasia ainda não passou por esse processo mas, para já, não está preocupada. "Uns meses antes teremos de ler os manuais e estudar um pouco, sobretudo para eles se sentirem mais confortáveis com a linguagem dos exames. Mas eu sei que eles sabem muitas coisas. Nos exames, eles têm de decorar a matéria toda e responder sozinhos. Mas a vida não é assim. Na vida, temos recursos que podemos usar e trabalhamos em equipa, cada pessoa tem as suas competências. Por isso, em vez de prepará-los numa matéria, quero prepará-los para pensar, para trabalhar com outras pessoas, para comunicar. Dar-lhes ferramentas. Isso é o mais importante."

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