"Deus não nos ouve quando estamos menstruadas", diz uma das adolescentes entrevistadas para o documentário Period. End of Sentence, que venceu o Óscar de Curta-Metragem Documental no último domingo (24 de março). A reação da realizadora norte-americana (de origem iraniana) Rayka Zehtabchi ao saber que o filme ganhara uma estatueta dourada é por si só um statement. "Não posso acreditar que um filme sobre menstruação tenha ganhado um Óscar", disse no Kodak Theatre. Já antes tinha brincado, um comentário que deveria ser entendido como ácido, não fosse o momento de festa: "Não choro porque estou com o período" mas sim por estar emocionada..O documentário, com o título em português Período: o Estigma da Menstruação, tem 26 minutos de duração e está disponível na Netflix. Não é apenas um documentário sobre o facto de as mulheres menstruarem, mas é também acerca da igualdade de género ou da falta desta em Hapur, uma cidade a cerca de sessenta quilómetros de Nova Deli, na Índia. É aqui que as meninas deixam de ir à escola porque o pano que absorve o sangue menstrual "fica tão cheio e não temos privacidade para o poder trocar". Em Hapur os homens explicam que "a menstruação é uma doença" e as raparigas têm tanta vergonha que escondem o rosto debaixo dos lenços quando falam sobre isso. "Isso" é o que as impede de falar com Deus, estão proibidas de entrar num templo quando estão menstruadas porque "Deus não as ouve". .No Nepal, as mulheres hindus são obrigadas a isolar-se em abrigos, onde ficam expostas aos ataques de animais, ao frio e ao calor extremos. A prática - que desde o ano passado se tornou ilegal - é chamada de chhaupadi..Period. End of Sentence conta a história simples e absolutamente transformadora de como uma máquina de fazer pensos low cost - construída por um homem - mudou a vida de umas quantas mulheres de Hapur. Não só encontraram uma forma de sustento - "o meu marido agora respeita-me, eu ganho o meu próprio dinheiro", diz uma das mulheres ouvidas no documentário - como já não são obrigadas a abandonar a escola porque o penso - retangular, alto, daqueles que no mundo ocidental já ninguém quer usar - permite-lhes caminhar sem vergonha e "ir para todo o lado". Não é um anúncio de televisão, mas a vida real. A marca dos pensos - mais baratos e vendidos por mulheres diretamente a outras mulheres - recebeu o nome Voar..Não, Períod. End of Sentence não é só um filme sobre menstruação, fala-nos também de uma realidade que nos parece muito, muito distante. Será mesmo assim?.Em fevereiro, e depois de dois anos de insistência, a Plan International UK - uma associação que luta pelos direitos das adolescentes no mundo - conseguiu que fosse finalmente incluído na lista de emojis um desenho que representa a menstruação. A luta foi só meio ganha: mais de cinquenta mil mulheres votaram e o emoji selecionado foi o que representava umas cuecas manchadas de sangue. A Unicode Consortium (a empresa que gere os emojis a nível mundial) rejeitou o desenho. Após nova tentativa, a Plan UK conseguiu que um emoji a representar o período fosse aceite. O emoji da menstruação é uma gota de sangue perfeita. Umas cuecas ensanguentadas seria demasiado..Foi isso mesmo que considerou a rede social Instagram quando, em 2015, e por duas vezes, censurou uma das imagens de um trabalho da poetisa e fotógrafa indiana Rupi Kaur. O conjunto de fotografias sobre a menstruação era um manifesto e um desabafo - a artista é indiana mas foi viver para o Canadá aos 4 anos. "Nós menstruamos e eles veem isso como algo sujo. Doença. Um fardo. Como se este processo fosse menos natural do que respirar. Como se não fosse amor. Trabalho. Vida", escreveu Kapur na descrição da mostra fotográfica que recebeu o nome Período..A imagem vetada pelo Instagram - que depois pediu desculpa e integrou a fotografia - mostra uma mulher deitada, de bruços, de costas voltadas para a câmara, com sangue na roupa e no lençol. Reagindo à censura, Kaur escreveu um post sobre o assunto e apontou o dedo à perpetuação do tabu e ao cinismo da rede. "Não me vou desculpar por não alimentar o ego e o orgulho da sociedade misógina que aceita que eu mostre o meu corpo em roupas íntimas, mas não com uma perda de sangue [menstrual].".Entre este mundo e o outro - Portugal e Índia - as diferenças também assentam no nível de riqueza e nas oportunidades que são dadas às mulheres. Mas os costumes que em Hapur retiram as raparigas das escolas encontram semelhanças com o que a poetisa portuguesa Adília Lopes escreveu há vinte anos numa crónica do jornal Público sobre o seu tempo de rapariga: "É horrível pensar que tudo se passou, e ainda se passa, às escondidas, com medos, com vergonhas, em sacristias nada sacras. Eu, embora gostasse muito de estar menstruada, tinha medo de que os outros soubessem que eu estava menstruada. A minha mãe ainda era do tempo dos paninhos. A Maria Arminda dizia que o lavadeiro quando lavava os paninhos gritava "Aquelas porcas! Aquelas porcas!". A vergonha de ser mulher - é disto que se fala em Period. End of Sentence. O Óscar premiou a discussão - e a ação - sobre a igualdade de género. Porque ela também se discute a este nível.