Do ut des, ou Fátima, altar do egoísmo

Alguém dizer "Nossa Senhora curou-me (ou ao meu filho) porque eu pedi", significa que, entre todos os que sofrem e morrem ou veem sofrer e morrer os seus, se considera digno de uma distinção: o seu sofrimento valeu mais
Publicado a
Atualizado a

Li na semana passada uma crónica muito interessante de Daniel Oliveira sobre Fátima. Partindo do elogio ao filme de João Canijo (que ainda não vi), prossegue para o elogio do espírito comunitário que, em oposição ao "individualismo egomaníaco", se espelharia naquele culto, e do sacrifício autoimposto como forma (única?) de redenção e libertação.

Curioso que o Daniel, com quem tantas vezes concordo e de quem muito gosto, tenha escrito sobre Fátima nesta perspetiva. Estando há semanas a matutar sobre se devia escrever sobre o mesmo assunto, foi este texto que me decidiu a fazê-lo.

Conheço Fátima por via profissional: fiz reportagem lá aquando da visita de Bento XVI, em 2010, e voltei a reportar sobre o fenómeno em 2015. Tenho pois a pretensão de, não tendo visto a obra de Canijo, saber do que trata: de pessoas, como sempre se passa com os filmes do realizador (parece lapalissada mas não é), das pessoas que caminham para Fátima e daquilo que de notável e tocante, como de banal e cómico e até repulsivo, sucede nessa caminhada. Há, é claro, múltiplas razões para a dita e muitas relações diferentes com o lugar e sua mitologia. Mas diria que a maioria tem a ver com a frase de uma das peregrinas que entrevistei: "Cada uma destas pessoas traz um desespero". Porque o que ali aflui é a mais radical e comum das necessidades, a de encontrar sentido, redenção, consolo - colo. Ou, como tantos dizem, a ideia de mãe (ainda que colo não seja necessariamente materno, mas isso é outra conversa).

A noção de que um ateu é insensível aos fenómenos religiosos e, mais, que a relação dos ateus com a religião é sempre de incompreensão e desprezo, ódio até, não resiste a um pouco de cultura. Fátima é um lugar interessante para mim, apesar de (ou ainda mais por) não crer em nada do que nele se celebra - a não ser na belíssima pungência da esperança. E surpreendeu-me, como surpreenderá, suponho, o filme de Canijo as pessoas que pensam como eu e nunca lá foram, o quanto, a despeito da obscenidade de muito do que ali se passa - do comércio desbragado ao exibicionismo pornográfico e sua incitação institucional (na construção do "joelhómetro", por exemplo), da deliberada exploração da crendice e desespero à inadmissível confusão entre Estado e Igreja Católica patente por exemplo na presença de militares na escolta da imagem - a fé das pessoas, ali tão manifesta e transbordante e desabrigada, toca quem a olha de fora.

Tal, porém, não impede o pensamento crítico. E se há algo que ressalta em grande parte dos "peregrinos" é a ideia de uma relação especial, individual, com a divindade - entendendo-se aqui divindade como a "Senhora de Fátima", porque é como divindade que ela é adorada, de forma indesmentivelmente pagã, pelos seus seguidores -, a qual permite que esta "conceda graças" e "atenda pedidos". Esta ideia, pressupondo que quem pede e quem crê ter sido atendido (e vem "pagar") se acha com direito a uma atenção especial, é algo que contradiz a idílica ideia de "espírito comunitário" do texto de Daniel. É aliás um bom exemplo de "individualismo egomaníaco". Quando alguém diz, por exemplo, "Nossa Senhora curou-me (ou ao meu filho) porque eu pedi", o que está a dizer é que, entre todos os que sofrem e morrem ou veem sofrer e morrer os seus, foi alvo de uma distinção; que o seu sofrimento valeu mais, foi mais valorizado.

É isso mesmo que transmitem os "milagres" certificados pela Igreja Católica. Quando se afirma que uma criança foi salva no Brasil após cair de uma janela porque o pai "pediu aos pastorinhos" está a declarar-se que todas as crianças que morrem diariamente, algumas de mortes pavorosas após vidas de sofrimento - por doença, maus-tratos, violações e outros horrores - não foram salvas porque ninguém pediu por elas à Francisca e ao Jacinto, é isso? E, no caso de ter pedido (quantas preces não enchem por exemplo os corredores do IPO), a não concessão deve ser lida como?

Difícil imaginar maior ausência de empatia, atenção ao outro, amor - não é suposto tudo passar pelo amor? - na opaca autocracia destes decretos; difícil entender que tanta gente pareça comprazer-se na existência de entes com superpoderes que só usam por capricho, numa lotaria tão sem critério como a do acaso.

E o sacrifício? Cada vez há menos disso - muito do que se vê nas peregrinações, a de Fátima como a do caminho de Santiago, é uma combinação de maratona desportiva e espiritualidade difusa, de ecologia com convívio, patuscada e rito de passagem, para não falar dos casos, cada vez mais numerosos, em que se peregrina por etapas, voltando para casa de carro ao fim de cada dia -, mas quando há trata-se, maioritariamente, de um contrato, uma troca: faço isto se me fizeres aquilo, ou faço isto porque me fizeste aquilo. Do latim do ut des: dou para que tu dês - ou o avesso da dádiva redentora. Não, o comércio e o mercado não estão só nos vendilhões da quinquilharia, das velas, das promessas, na caixa registadora que faz de Fátima o cofre-forte da Igreja Católica. Vivem no coração do fenómeno.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt