"Cada uma destas pessoas traz um desespero"

Muitos fazem a viagem em etapas: uns quilómetros por dia com regresso a casa de automóvel, comboio, camioneta, em dois fins de semana, com "carro de apoio" a transportar comida e malas; muitos vão pela experiência, pelo gosto de andar. Mas ainda há quem caminhe 200 quilómetros descalço e fale da imagem de Fátima com a voz embargada. Retratos de peregrinos modernos.
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A estrada é estreita, a berma, meio metro a pique. Enormes, camiões passam em rugido, rasando quem nela caminha. Como esta mulher e este homem que avançam na Nacional 1, coletes fluorescentes, mochila e bordão, um atrás do outro. O passo estugado mais a impossibilidade de caminhar ao seu lado faz árdua a entrevista. "Cuidado, isto é muito perigoso", avisa Manuel Gonçalves, 57 anos. "Os condutores não têm respeito nenhum, olhe para estas tangentes." A mulher, Maria de Lurdes, 53 anos, escusa-se: "Se ando mais devagar quebro o ritmo."

O objetivo é Santarém, a 54 quilómetros do ponto de partida e 61 de Fátima. "Vamos fazer isto em duas etapas, porque dormir fora custa muito caro: em Santarém apanhamos o comboio de volta a casa, depois voltamos a Santarém e continuamos." Nas mochilas trazem água e comida - vão parar para almoçar no Cartaxo, mais ou menos a meio da etapa. "Porque vimos?" Maria de Lurdes parece achar estranha a pergunta. "Fé. E não, não é para pagar nenhuma promessa." Manuel, como a mulher desempregado, despede-se: "Temos fé de que isto há-de melhorar."

Como o casal Gonçalves, os Andrades, ambos Carlos, pai e filho, vendedores ambulantes de farturas, não estão a pagar nada. "Gostamos de fazer, sentimo-nos bem. Não há como explicar. Olhe, é como fazer uma maratona." E se o mais novo, 24 anos, garante que "a Senhora de Fátima para mim é tudo", enquanto o mais velho certifica que a caminhada se deve a "razões religiosas", igrejas não são com eles. "Não somos aquilo que se chama católicos praticantes", diz o pai. Saíram do Bombarral às quatro da manhã, com acompanhamento da carrinha "de apoio", conduzida por Cristina. Cristina é mulher de um Carlos e mãe do outro e, acompanhada da cadela Joaninha, traz a comida e a dormida (colchões para passar a noite na viatura) para a viagem, proporcionando, nas paragens, massagens aos pés martirizados. Preferia no entanto ir a pé. "Gosto de andar, fazer o carro de apoio é muito chato, por isso de vez em quando paro e ando um bocado." A primeira vez que peregrinou foi há nove anos, e de promessa em riste. "Disse que se conseguisse pagar esta carrinha ia a Fátima a pé, e consegui, portanto fui." O ano passado integrou, com o marido, um grupo de peregrinos que ficava em hotéis e achou muito caro. "Saiu a 100 euros cada um. Hoje pus 30 euros de gasóleo, não sei se vai chegar, mas assim sai muito mais económico." E os outros custos? "Ui, fazer isto tudo a pé custa muito, não só por causa das bolhas que a gente mesmo com os ténis tem mas pelas dores nas pernas." Ri: "Eu é sempre à base de Ben-u-rons, senão não aguentava."

39 quilómetros depois da partida, à passagem de um cruzamento com tabuletas que dizem Virtudes (há mesmo uma terra com este nome?) e Convento, o filho já se queixa de bolhas, mas continua a sorrir. "Parar é que não dá, quando se pára começa a doer tudo." Ainda têm mais dois dias caminho até à Cova da Íria. E como é, quando chegam? "Voltamos para casa. Quer dizer, vamos ao santuário, metemos a velinha e vimos embora. Não podemos ficar, ao fim de semana trabalhamos."

"Sou crente mas não nos padres"

É terça 5 de maio, faltam oito dias para o dia da procissão que celebra a suposta aparição da Virgem a três pastorinhos em Fátima, há 98 anos. O grosso dos peregrinos estará na estrada neste fim de semana de 9 e 10, mas quem, como Vítor Manuel, Susana Pereira e Hugo Oliveira, vem de Espinho e quer fazer todo o trajeto a pé e de seguida já saiu há muito. Há uma semana, precisamente: "Partimos terça às 18", diz Vítor, 41 anos, eletricista. Veio acompanhar Hugo, de 31, mecânico, cujos pés descalços arregalam os olhos enquanto segue pelo risco branco a delimitar a estrada. Talvez seja mais macio e liso o alcatrão pintado; certo é que as plantas dos pés não evidenciam cortes nem bolhas. Milagre? Encolhe os ombros. "O pior foi a chuva de ontem, amolece a pele, que esfarela. Dói um bocado." Deve doer mesmo. Enquanto está parado para a entrevista não cessa de levantar os pés do chão, à procura de alívio. A mulher, Susana, cabeleireira, é que, conta, o tem ajudado, massajando-lhe os pés com creme nas paragens noturnas, quando recolhem todos à caravana dos pais de Vítor, que, veteranos da coisa, desta vez vieram de "carro de apoio". "A minha mãe faz isto desde 1989", informa o eletricista; ele próprio, que se diz "católico mas não muito de ir à missa, sou crente mas talvez não o seja muito nos padres", já o fez seis vezes - com esta sete: "Vim pela filha deles." Eles Hugo e Susana, cuja Clara, de três anos, foi operada ao coração. É o primeiro ano de pagamento da promessa que o pai fez se a filha se salvasse: ir a Fátima a pé todos os anos, descalço na estreia. A menina ficou bem e ele aqui está, com a mulher grávida, a cumprir. Faltam 38 quilómetros. E depois? Depois, explica Susana, "rezamos, acendemos velas, damos alguma esmola e pronto. Venho de lá outra". Sorri, tranquila. Tão tranquila que custa a crer, pelo ar descansado dos três, estarem mesmo na última etapa de 200 quilómetros a caminhar.

Não, aquilo que se encontra nas estradas para Fátima não é bem a imagem de sacrifício e despojamento que a palavra peregrino antecipa. Ainda assim, estamos longe do retrato que a revista alemã Der Spiegel fez, no verão do ano passado, da peregrinação a Santiago de Compostela, tornada moda na Alemanha graças a um livro recente. De fontes de vinho na estrada para retempero dos caminhantes a oportunidade de encontros amorosos, passando por uma oferta comercial esfuziante e pela perspetiva desportista - Rock in Rio - "este ano fazemos isto e para o ano vamos ao Nepal", a reportagem descreve um fenómeno que em 2013 registou 215 mil pedidos de certificado da romagem (passados pela igreja local) e 200 milhões de euros, a uma média de 30 por dia por pessoa, injetados na economia espanhola, e que de 1978, quando só 13 pessoas fizeram a peregrinação, até hoje se transformou num gigantesco negócio e num acontecimento internacional. Como o 13 de maio em Fátima, que de acordo com a direção do santuário reuniu 210 mil pessoas em 2014, com 21 toneladas de velas derretidas e 240 mil mensagens recebidas. Do valor das esmolas não se sabe, como não é fácil fazer estimativas quanto à soma dos negócios associados à peregrinação: mas não andará longe do contabilizado para Santiago de Compostela.

"Quando andas tudo é possível"

Uma visão comercial e de massas bastante ao avesso da ideia original da penitência, reflexão e retiro implícita no ato de peregrinar. Ainda assim, quem caminha até Fátima, como até Compostela, fala de paz, de um lavar de alma, de uma experiência transformadora - mesmo quando a componente religiosa não está presente ou é muito ténue. Parte da explicação pode estar em algo que no modo de vida ocidental está tão arredado da maioria dos quotidianos: andar. "Quando andas tudo é possível", escreveu o filósofo francês Frédéric Gros no seu livro de 2009 Marcher, une philosophie (Andar, uma filosofia), citando Jean-Jacques Rousseau. Com Nietzsche, Thoreau, Worsworth, Rimbaud e Whitman, entre outros, Rosseau é um exemplo de pensador para quem andar e pensar são indissociáveis. "Andar faz coincidir a alma, o corpo e o mundo", diz Gros. "Há um elemento de repetição no ato de andar que conduz ao esquecimento. E há um cansaço. Uma paz. Penso que quando se está realmente só há uma fragilidade. Os sentimentos são mais intensos. Tem-se mais o sentimento da eternidade das coisas. Há momentos em que o nosso corpo vibra com a paisagem."

Luísa Letra, 53 anos, vendedora de peixe na praça de Vila Franca, talvez nunca tenha ouvido falar de Gros, mas ecoa as palavras dele. "Há um descobrir da natureza. Ano após ano, contemplamos, vemos a evolução. Ali na serra dos Candeeiros há um momento em que é muito difícil, é um caminho muito cheio de pedras, muito íngreme, custa muito chegar lá acima, onde há uma capela. Mas quando chegamos é uma sensação... E o meu marido [o condutor da "carrinha de apoio", onde vai a comida, as cadeiras, a mesa, as malas, etc] espera por nós ao pé da capela, vai assando um chouriço para comer, pondo para fora um pão caseiro e nós vamos lá ter... Não consigo explicar como é bom." Este caminho ao qual, diz, "se fica preso o resto da vida, porque custa fisicamente, mas é de uma riqueza espiritual imensa", fá-lo há mais de 30 anos. "A primeira vez foi aos 18, com a minha mãe." Caminhando com oito pessoas, sete mulheres e um homem, é a incontestada líder. "Sou eu que organizo. Cada um traz uma coisa para comer. Ontem comemos bacalhau que eu dei, temos ali entremeada para o almoço que outros trouxeram. Fugimos dos grandes grupos, porque têm uma frieza... É gente a mais, as pessoas não se conhecem. Fátima é isto: fazer esta grande caminhada, dar um bocadinho de nós aos outros, ser um bocadinho psicólogos. E há uma coisa que quero dizer: há um protagonismo brutal dos peregrinos que chegam a 12 e 13 de maio e no fim de semana anterior, mas não são só esses que contam. E para nós, que vamos antes, não existe nada ao longo do caminho: nem bombeiros, nem sítio para dormir, ninguém a acolher. Acho mal."

Partiram de Vila Franca e foram até Azambuja no fim de semana anterior, ontem pegaram em Azambuja para fazer tudo até ao fim - é a dois ou três quilómetros de Fátima que estamos. Desde muito jovem membro de grupos católicos, Luísa é frequentadora habitual da missa, mesmo se torce o nariz à palavra "praticante". "Ser católico é antes de mais olhar para os outros, senão é teatro." Há outra expressão que a aborrece: "Promessa, não gosto disso de "eu vou se tu me deres". Não, isto é uma ação de graças. Um carregar de baterias. É ir junto da mãe, dizer o que necessito." É isso que é para si aquela imagem? Luísa continua a caminhar na sua passada larga, imponente, de mulher alta, mas a voz tem lágrimas. "O que é uma mãe para cada um de nós?" Faz uma pausa à procura de palavras. "Tenho a minha mãe carnal - felizmente ainda a tenho - e a minha mãe do céu. Aquela que eu sei que quando a procuro no silêncio ela está lá. A fé... A fé é uma coisa em permanente movimento. Sem ela era um vazio enorme, era levar-nos à loucura." Pede para não escrever o que a seguir mostra de si e dos companheiros, para concluir: "Cada uma destas pessoas traz um desespero."

E quem não - assim todos pudessem crer que se pode entregá-lo a um lugar, a uma imagem. Faltam 500 metros. Com Luísa à frente, o grupo despede-se, a caminho da meta.

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