Cozinha de viagens. Entre Austrália e Portugal
Ana Leão tem 32 anos mas já trabalhou em muitos restaurantes. Não só em Portugal mas em Espanha. Em locais com estrelas Michelin e chefs famosos. Mas o gosto pela viagem e pela descoberta levou-a à Austrália. Nos últimos dez anos tem feito a ponte entre os dois países, apenas interrompida por causa da pandemia. Por lá, explorou o país de uma ponta a outra numa pequena carrinha. Cozinhou, trabalhou em quintas, plantou árvores e desovou salmões. Agora está em Lisboa, na equipa d'O Velho Eurico, enquanto não vai de novo à aventura de cozinhar pelo mundo.
O gosto de cozinhar vem desde pequena?
Sempre adorei cozinhar. Do lado da família do meu pai cozinhava-se muito e lembro-me de estar em redor da minha avó quando ela cozinhava. O lado da minha mãe é mais ligado à ciência. Ela é médica e a minha irmã é cientista. Mas escolhi seguir cozinha e vim do Porto para a Escola de Hotelaria do Estoril.
E como foi depois do curso?
Ganhei uma bolsa, eu e outros alunos, e fomos para Tenerife para trabalhar com vários chefs, entre os quais Martin Berasategui (que tem o Fifty Seconds, em Lisboa). Na altura adorei. Era muito trabalho mas também havia muita festa [risos]. Depois consegui ir estagiar no Dos Palillos, em Barcelona, que tem uma estrela Michelin. Ao fim de pouco tempo fiquei como chef de partida [responsável por uma secção]. E isso levou-me a ir trabalhar para o El Buli, do chef Ferran Adrià nos últimos dias antes do restaurante fechar. Foi bom, mas talvez tenha sido onde percebi que não era a alta cozinha que queria fazer no futuro, mas sim uma cozinha mais descontraída. Depois disso estive um tempo a trabalhar em Portugal, antes de viajar para a Austrália.
E como surge a Austrália no percurso profissional?
Decidi, com o meu namorado da altura, que também é chef, ir para Austrália por três meses. E fui ficando. Por lá consegui um apoio para trabalhar em Sidney. Estive em vários tipos de restaurantes, desde asiático a italiano até ao catering, que adorei. Mas mal consegui, comprei uma carrinha e comecei a viajar pela Austrália. Durante dois anos fui parando e trabalhando em várias quintas e em restaurantes em troca de comida e alojamento e às vezes algum dinheiro. Dei quase a volta ao país.
Que tipo de trabalhos fez?
Fizemos - porque fui com o meu namorado - de tudo. Desde a apanha de avelãs, plantámos árvores, tirámos ovas de salmão. Além disso ainda trabalhávamos em restaurantes para ganhar dinheiro.
Dois anos dá para contar muitas histórias, não?
Sim, muitas. Lembro-me quando estive no sul da Austrália a plantar pinheiros. Tínhamos que o fazer com umas botas altas porque havia por lá muitas cobras mortíferas. Diziam-nos no caso de sermos mordidos para só levantar o braço porque quanto mais nos mexêssemos mais depressa morreríamos.
E quando cozinhava por lá, punha alguma coisa da cozinha portuguesa?
Na maior parte da minha vida como cozinheira nem sequer fiz muita comida portuguesa, só agora que estou mais tempo em Portugal e aqui n'O Velho Eurico é que estou a aprender mais. Mas sim, quando lá estava e fazia alguns eventos e cozinhava umas sardinhas ou um bacalhau com broa. Mas isso era por lá, cá em Portugal ainda tenho que aprender a cozinhar bem a comida portuguesa.
E com essas experiências, que tipo de cozinha faz?
Aprendi a respeitar muito o produto. Tornei-me uma snob com os tomates, por exemplo [risos], andei em quintas de tomates e agora faz-me impressão comer tomates de estufa ou fora de estação. Os meus pratos andam sempre à volta de um determinado produto e brinco com isso. Mas não sei dizer que tipo de cozinha faço, talvez seja uma cozinha de viagens.
À semelhança do que aconteceu na Austrália, sei que havia outra viagem planeada que a covid-19 adiou....
Sim. Queria ir viajar e trabalhar do México ao Chile. É um plano que tenho há muito tempo. Já tinha tudo preparado, desde passagens, seguros, vacinas tomadas. E sabia que ia trabalhar para uma quinta de café, de cacau e depois de mescal. Mas ia viajar de comboio ou autocarro, para não andar sozinha de carrinha. Com a covid não pude ir.
E decidiu vir para Portugal por causa da covid?
Sim, era para ir diretamente de Austrália para o México. Mas a pandemia obrigou-me a ficar em Sidney, onde vivo na mesma carrinha com a qual viajei os dois anos pela Austrália. Apesar de estar numa comunidade, comecei a ficar muito sozinha com o isolamento trazido pela covid. Senti que era preciso regressar por causa dos meus familiares. Mas foi difícil. Como também sou cidadã australiana tive três tentativas para sair de lá. Uma das vezes a polícia foi buscar-me ao avião porque diziam que tinha de ter razões mais validas do que querer "ir para casa". Mas depois lá consegui.
E mal chegou veio o projeto de restaurante temporário no Porto?
Sim. Antes disso, quando andava entre Portugal e a Austrália, sempre que cá vinha fazia eventos que se chamam Colher Torta. Quando voltei para Portugal, por causa da pandemia, fiz logo um evento para o Porto Food Week, e depois tive durante três meses um restaurante pop up [temporário] no Parque da Cidade, no Porto. Depois disso vim para Lisboa, comecei a colaborar com a equipa d'O Velho Eurico e agora faço parte da equipa.
E como está a ser mais um novo confinamento?
Bem... já aconteceu tanta coisa.... Vou vivendo um dia de cada vez. Não estamos parados e estamos a fazer takeaway e delivery alguns dias da semana. Mas sobretudo não quero parar. Não só para me manter criativa e ativa mas também pela saúde mental. Trabalhar ajuda a manter a esperança que as coisas vão melhorar.
E depois da covid? É para ficar por Portugal ou...?
Depois disto que estamos a passar tenho que ir para a América do Sul. Tenho este sonho há muito tempo e quero ir e conhecer aldeias e as pessoas e os produtos e as cozinhas, sei não será num futuro próximo, mas vou. Por enquanto estou a gostar de estar cá. Apesar da pandemia a maioria dos cozinheiros da minha geração partilha muita coisa entre si e ajuda-se muito. E estou a gostar muito disso.