A mesa natalícia dos portugueses
É Natal, tempo de convocar à mesa os melhores com o melhor! Tempo também de revisitar os sabores e iguarias de sempre. Confira aqui que Natal adota e veja como pode ser tão diferente para todos! E como pode ser melhor!
Diz o povo que do Natal ao Entrudo come-se tudo. A seguir às muitas contenções e espartanismos à mesa típicas das longas semanas do advento, a brilhante e abundante doçaria vestia a mesa natalícia, com a doçaria mais rica e os melhores pratos da tradição de cada família. Há que ter em conta que outrora os dias de guarda - leia-se jejum e abstinência - eram ainda, há apenas dois séculos, mais de duzentos ao longo do ano. Como que em jeito de compensação, o próprio dia de Natal era uma espécie de grito de emancipação e até à quarta-feira de cinzas seguinte não se pensava sequer em abdicar das coisas boas e dos prazeres da vida.
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Não há Natal em que não me ponha a pensar nas virtudes que desde sempre víamos no maravilhoso fumeiro que pelo país todo se curava e apurava; no excecional e bem nosso amigo bacalhau - o fiel amigo - que estava sempre pronto a entrar em cena e que, de facto, não sendo peixe nem carne, sempre se podia comer. Secava-se polvo, raia e bacalhau, embebedava-se o peru para estar tenro e bem irrigado por esta altura e as travessas enchiam-se dos petiscos mais diversos. Demos uma voltinha aos manjares e costumes para ver como, apesar de tudo, vivemos tempos de abastança e abundância.
Bacalhau mas do bom
A ideia de que há mil maneiras de cozinhar bacalhau está errada; há apenas duas, a boa e a má! A rua do Arsenal era a mais concorrida de Lisboa nos tempos que antecediam o Natal, comprava-se ali e escolhia-se cura e bitola, levava-se para casa cortado em postas produzidas pelas oficiantes e ruidosas guilhotinas. Depois demolhava-se nos lares, normalmente na cozinha, em tinas que se punham a um canto, renovando-se a água de tempos a tempos, duas ou três vezes por dia. Hoje somos bem exigentes com a qualidade do bacalhau e se não conseguimos melhor do que o congelado, pois que seja!
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Há boas marcas no mercado e a garantia de ficar bem servido é maior quando opta por um produto bem tratado e ultracongelado. Mas se quer mesmo chegar ao pináculo da qualidade, opte por um bom bacalhau seco e salgado e aprenda a regenerá-lo da melhor forma. Sabemos hoje que a temperatura é fator crítico, basta perceber que o bacalhau vive a temperaturas entre -4ºC e 2ºC para chegar à conclusão que a demolha tem de ocorrer no frigorífico na zona mais fria, para que o peixe não apodreça prematuramente.
É notável o trabalho que a Lugrade tem feito a nosso favor. Começa por ter o bacalhau de 20 meses, a que chamam Vintage e que é um bacalhau da Islândia seco e salgado com o maior carinho ao longo de mais de um ano. Emprancha quando se pega pela cauda, o que quer dizer a um tempo que foi bem seco e que não estamos a comprar água em vez de peixe.
Mas a Lugrade foi mais longe que os demais, ao desenvolver o dispositivo que dá pelo nome de Fiel. Trata-se de um aparelho cuja sonda se submerge juntamente com as postas e que nos vai dando conta da evolução da demolha. Uma maravilha que queremos ver em todas as casas.

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Vencida a fase da demolha, uma boa posta assada no forno é uma delícia! Fica no ponto em que queremos, com o sal afinado ao nosso gosto, já que isso pode ser regulado no Fiel. Optando pelo congelado, siga as instruções da embalagem e não vai ficar dececionado.
As couves na altura do Natal estão o que se chama curtidas pela geada, o que é já uma forma de aprimorar o sabor e dar uma textura favorável ao prato rei da consoada, cozido com todos. Regado por bom azeite, é uma gulodice perante a qual ninguém se faz rogado.
Não se esqueça do bolo rei!
Tem forma de coroa, é normalmente decorado com fruta cristalizada, e composto por massa brioche aromatizada com licores e outros segredos. Le gâteau des rois, chamava-se originalmente, quando o incontornável Balthazar Castanheiro junior, filho do fundador da Confeitaria Nacional, em Lisboa, o provou e tomou nota numa incursão a Paris em 1875. O bolo em França era apenas produzido na altura da festa dos Reis, em janeiro, mas o mestre pasteleiro português viu nele novidade e interesse para os seus clientes e começou a produzi-lo diariamente. Como era normal na época e de certa forma hoje ainda é, a massa base é de brioche a que se junta frutos cristalizados e secos, depois adornado com pedaços coloridos como adornos da coroa real.

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Intensifica-se a produção e o consumo na altura do Natal mas um pouco por todo o país há casas que o fazem todos os dias e raramente sobra. A partir do bolo-rei criou-se variantes como o bolo-rainha, que não tem fruta cristalizada, apenas frutos secos, começou a fabricar-se bolo-rei de chocolate e muitos outros. Tradição bem viva e avivada por muitos pasteleiros, o bolo-rei tornou-se indispensável na quadra festiva do Natal. Confesso que não sou cultor do bolo-rei, mas ao mesmo tempo sou forçado a confessar-me fanático pela massa brioche, fervor superado apenas pela fixação que nutro pela ligação quase alquímica do pão-de-ló com a casta vínica Chardonnay. Mas isso é outra conversa.
O meu interesse pelo bolo-rei está na massa de que é feito, muito mais do que a parafernália frutada e cristalizada que normalmente se encontra. É bem melhor o bolo inglês que sempre se fez em casa, espécie de pain d"epices sem o mel nem a canela mas produzido no mesmo espírito. Mas claro que cada um tem o seu próprio gosto, e gostos não se discutem.

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A categoria brioche está infelizmente contaminada pela adoção descontrolada e incontinente dos "mixs" de padaria; preparados quase instantâneos que indiscriminadamente se aplicam em demasiadas situações. A proximidade de sabor de um simples queque e um bolo de arroz são uma ponta sensível desse imenso iceberg. Há que procurar, por isso, as casas de fabrico próprio, e que essas, por sua vez, renunciem à "abordagem mix".
Peru, capão e porco
O peru é originário da América Central e disseminou-se pelo mundo inteiro como ave de criação de grandes proporções de que se aproveitava tudo. Aconteceu por ação comercial intensa dos mercadores turcos que atravessavam o Atlântico e aportavam em Inglaterra e na América do Norte. Por incrível que pareça, apesar de originária do México, entrou no território americano trazida de Inglaterra pelos turcos, pelo que foi baptizada de "turkey", hoje sinónimo de peru em inglês. Os franceses chama-lhe "dinde" - lê-se "dande" - por ser para eles "la poularde des indes", a galinha das Índias Ocidentais. Os espanhóis chamam-lhe "pavo", pela configuração viva semelhante à do pavão, alusão mais ao aspeto ornamental do que gastronómico do grande pássaro. Nós, portugueses, chamamos-lhe peru, pura e simplesmente porque, naquele tempo, tudo o que vinha da América do Sul dizia-se que era do... Peru.
Deu grandes passos e está pronto a voar o nosso Capão de Freamunde, agora já com Indicação Geográfica Protegida (IGP), pelo que há que o procurar e exigir. Ave genuinamente portuguesa, de assado copioso, para a família inteira. Remonta ao império romano a sua história entre nós, nos cocurutos do país, onde o pedrez vivia feliz no planalto granítico do reduto das Chãs de Ferreira, no triângulo composto por Ferreira, Paços de Ferreira e Freamunde.
A um certo centurião incomodava o canto do galo de tal forma que ordenou a castração da espécie, e o animal deixou de cantar. A castração entre os dois e os quatro meses resulta, contudo, no crescimento desmesurado, acumulação de gordura, ausência de crista e sobretudo sistema imunitário muito frágil, tornando difícil a sobrevivência ao frio mais profundo.

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No Alentejo, come-se lombo de porco assado no recolhimento da lareira de cada casa, contraponto interessante com praticamente todo o país. Está na altura de se converter a uma carne igualmente resistente à temperatura como o capão. Trabalha-se no forno uma perna de capão como um pernil de porco.
Polvo

© Restaurante D'Bacalhau
O polvo fresco é felizmente hoje um ingrediente comum e para cozinhar há apenas que o mortificar um pouco, ou congelá-lo antes de o cozer, o fim é o mesmo, que é a destruição das fibras que o fazem retesar ou ficar com textura incomestível. Muitas vezes, contudo, é por se cozer de mais. Existe ainda o mito da panela de pressão: há que o substituir pelo que faz mais sentido, que é dar-lhe a cozedura em panela que ele merece.
Faz um arroz maravilhoso, caldoso, que cheira e sabe a Natal e é prato de véspera, antes de sair para a missa do galo. É tradição eminentemente nortenha.
Gigante trabalho petisqueiro e arrozeiro em torno do polvo tem feito o chef Júlio Fernandes, do restaurante D"Bacalhau, na Expo. É uma entrada maravilhosa e faz um dos melhores arrozes da tradição portuguesa.
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