Manuel José Guerreiro, fotografado nos estúdios do DN
Manuel José Guerreiro, fotografado nos estúdios do DNPaulo Spranger

Manuel José Guerreiro: "As cooperativas não nasceram para a globalização. Nasceram para as suas comunidades"

A Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Torres Vedras será anfitriã da Global Innovation Coop Summit 2025, que se realiza nos dias 27 e 28 em Torres Vedras, com centenas de participantes de todo o mundo.
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Em entrevista ao DN/Dinheiro Vivo, o presidente da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Torres Vedras (CCAMTV), Manuel José Guerreiro, fala da Global Innovation Coop Summit, o maior evento do cooperativismo mundial. A CCAMTV é a anfitriã deste grande evento que vai trazer a Torres Vedras mais de 500 participantes vindos de 32 países em todo o mundo, nos dias 27 e 28 de outubro. Com uma centena de funcionários e 15 agências no concelho de Torres Vedras, a CCAMTV conta com cerca de 800 milhões de euros em ativos, sendo uma das maiores do país. Manuel José Guerreiro destaca a sua solidez e ligação à comunidade.

A CCAMT é uma das maiores instituições de banca cooperativa em Portugal. E vai receber, na próxima semana, a Global Innovation Coop Summit. Que evento é este?

O primeiro evento da Rede Internacional de Inovação Cooperativa, que é uma cooperativa ela própria, com sede no Canadá, constituiu-se em 2020. O primeiro evento que fizeram foi em Paris. O segundo foi no Canadá.

E agora o terceiro vai ser aqui em Portugal, em Torres Vedras.

Sim. Nós vamos receber cerca de 52 oradores, oriundos do sector cooperativo de 32 países. Vamos abordar vários temas de acordo com uma pré-agenda que tem a ver com três pilares. E, há também, uma diferenciação, que é o facto de termos, por um lado, a conferência, mas, por outro lado, teremos workshops, que funcionam como fábricas de inovação. Teremos cooperativas de diversos ramos, incluindo do tecnológico, e não apenas da banca. Vamos ter o presidente das Cooperativas Europeias; o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel; o secretário-geral adjunto das Nações Unidas, Jorge Moreira da Silva, bem como especialistas de diversas áreas, que vão desde a medicina à filosofia, passando pela economia, passando pelas tecnologias, pela Inteligência Artificial. Aqui vamos falar muito de há e como é que elas podem ajudar a que a proximidade seja reforçada através da inteligência artificial. O figital é uma expressão nova e que propõe a ligação entre o físico e o digital.

Vão discutir isso no encontro?

É algo que vai ser abordado. E aquilo que é muito importante é que nós consigamos identificar pontos de inflexão para os problemas que temos hoje no mundo, ou seja, problemas de governance, por problemas ao nível económico, nomeadamente um peso excessivo também das tecnológicas, e um desvirtuamento no que diz respeito aos princípios essenciais. Terêncio, há dois mil anos, dizia que aquilo que é importante e essencial é o humano. E, portanto, nós temos que perceber que no final estará sempre o ser humano.

Há uma área onde durante muitos anos o cooperativismo foi forte em Portugal, que foi a da habitação. Pode ser um caminho para resolver a crise da habitação em Portugal?

O cooperativismo nasce quando existem problemas e ele desenvolve-se no meio dos problemas, porque ele constitui em si próprio uma solução. O cooperativismo é próprio de países que são desenvolvidos. No Canadá cerca de 50% da economia está entregue ao setor cooperativo, na Alemanha cerca de 36%, nos Estados Unidos 32%. Em França temos também na ordem dos 30%. Na Alemanha mais. Portanto, é próprio de países que são capazes de se organizar. O oitavo maior grupo espanhol, o Mondragon, é uma cooperativa, que aliás vai estar presente em Torres Vedras e vai aproveitar para sondar para perceber se há hipótese de constituir uma espécie de Mondragon Dois, aqui em Torres Vedras. Em cada oito pessoas no mundo, uma está ligada a uma cooperativa. Em Portugal, o cooperativismo surgiu na Primeira República, quando havia necessidades de crescimento ao nível da literacia financeira, ao nível das escolas, ao nível da habitação, ao nível da promoção social. (...) O cooperativismo não é nem capitalismo, nem comunismo. É cooperativismo, ponto. Ou seja, ele abarca uma área ideológica desde a Doutrina Social da Igreja até ao Socialismo Operário. E ele é em si próprio uma forma de resolver. Nós temos um problema gravíssimo, como, aliás, tivemos em vários períodos da nossa história, no século passado, e eu quero lembrar que o Estado Novo recorreu em muito, em muito, ao cooperativismo, nomeadamente para superar as crises habitacionais. As pessoas hoje não se lembram, porque grande parte da população nasceu já depois do 25 de Abril. Eu próprio nasci perto desse período, mas ouvi sempre os meus amigos contarem isso.

O cooperativismo foi o modelo usado para resolver isso?

Mais que isso, mais que isso. Sete, oito pessoas viviam num apartamento. Portanto, esta coisa que hoje temos é um problema muito antigo e só se resolveu através de uma presença muito efetiva do cooperativismo, nomeadamente do Montepio, nomeadamente das mútuas, da Ordem dos Advogados e um sem número de outras instituições que fizeram investimentos no imobiliário. Não gostaria de entrar pela parte política, mas não percebo como é que nós, tendo um problema de sustentabilidade da Segurança Social, não agarramos mo dinheiro da Segurança Social, que está sujeito a ações, e não colocamos numa outra rentabilidade, o imobiliário. Num país com uma crise habitacional muito grande e que tem o imobiliário mais valorizado do mundo. Isto, de facto, é uma incongruência. Não se percebe.

E temos agora também, aliás, um concorrente vosso, o Novo Banco, que está em vias de ser comprado por um grande banco cooperativo francês, o BPCE.

Os bancos cooperativos, nas crises financeiras de 2008 e 2011, não tiveram necessidade de apoios públicos. Portanto, se perguntar se o cooperativismo tem ou não tem futuro, acho que, de facto, tem.

É um modelo mais racional?

É um modelo de longo prazo, e os modelos de longo prazo e estes, em geral, têm a tendência a vingar.

Mais no sector financeiro?

Não me parece. Aplica-se a muitos outros sectores. Por exemplo, nos vinhos, na área das farmácias, dos produtos farmacêuticos, do leite e outras. As cooperativas são elementos de estabilidade para o próprio território, onde existe uma cooperativa com ética, com governance, profundamente regulada.

Permite que existe um compromisso com as comunidades onde estão inseridas?

As cooperativas não nasceram para a globalização, elas nasceram para a comunidade e podem chegar à globalização, mas o que elas pretendem é organizar os fatores de produção em função da sua própria comunidade, com lógicas muito próprias.

Isso significa também que é menos provável que realizem alguns investimentos mais especulativos, que ponham em causa a sustentabilidade do seu modelo?

É evidente, ou seja, nós temos um balanço muito mais simples, nós não temos fundos nos nossos balanços. As caixas de crédito agrícola de base individual não têm esse tipo de problema, porque é um problema atualmente, uma vez que os fundos vão ter uma mesuração diferente em termos de capital, o chamado RWA. não queria muito entrar por aí porque são questões técnicas.

Mas é importante para as pessoas perceberem as virtudes deste modelo, do modelo cooperativo, face a outros modelos de banca. Há também algumas mudanças que têm sido feitas a nível da supervisão e tem havido cada vez mais exigências por parte dos reguladores em relação às caixas agrícolas. Acho que essas exigências se justificam?

Nós somos uma banca extremamente capitalizada e com graus de liquidez muito grandes, muito relevantes. Eu penso que nós, em Portugal, nós e a nossa congénere de Leiria, também de base individual, somos as duas instituições com os rácios de solvência mais elevadas em Portugal. Isto é bom que se diga. Ou seja, capitais próprios, capitais da sua comunidade, que fazem com que o rácio de solvência seja na ordem dos 62%. Quando a média dos bancos portugueses andará nos 13%.

Portanto, compara muito bem.

Sim. E a regulação veio no sentido de disciplinar o modelo de risco. Tudo o que seja disciplinar o modelo de risco deve ser fiscalizado e supervisionado pelo Banco de Portugal. O qual, como sabe, é ao mesmo tempo regulador e supervisor, e por vezes também orientador. A gestão cabe-nos, à administração, fazê-la. Eu acho que veio, ao densificar, veio tornar-nos mais robustos, porque, como lhe disse, não temos esse problema de não fazermos aquilo que é o modelo de banca europeu em termos de risco. Se me pergunta se tudo se aplica a este tipo de banca pela sua dimensão e escala, eu digo-lhe que não. Mas, obviamente, o modelo que foi criado, o Aviso 2 de 2025, agora foi recentemente alterado, ainda não contempla, como eu acho que devia contemplar, este modelo de banca de cooperativa. Nós temos três modelos de banca, um modelo de banca comercial, de teor acionista, um outro modelo, o modelo de poupança, que seguramente será próximo da Caixa Geral de Depósitos, e temos um outro modelo que é um modelo cooperativo e um modelo mais próximo da inclusão social. E que fique claro, estas instituições têm que apresentar resultados, tais como os outros, muito robustos do ponto de vista financeiro.

Tem que ser sólidas e rentáveis.

Muito sólidas. Como, aliás, o somos. Portanto, além de eficiências financeiras, temos outro tipo de preocupação. Temos que ter também eficiências sociais. Foi para isto que nós nascemos, no final de contas. Nós não nascemos para ser um player como os outros bancos. E eu acredito que a banca cooperativa é a mais completa. E porquê? porque consegue participar nos três modelos. Ela consegue ser ao mesmo tempo uma banca lucrativa, muito lucrativa, ao mesmo tempo uma banca de poupança, porque é uma banca de confiança, de onde nós em Torres Vedras seguramente teremos cerca de 45 a 50% das poupanças confiadas à instituição, por isso temos esses tais quase 800 milhões de ativos.

Isso significa que tem uma implantação local muito forte e a confiança das pessoas que vivem em Torres Vedras.

Uma banca cooperativa não é apenas ter agências, porque isso também a Caixa Geral de Depósitos tem. Nós temos que ter mais, temos que ter um entendimento e uma compreensão muito maior relativamente às nossas partes interessadas e é isto que caracteriza uma banca cooperativa.

Tem havido uma certa pressão no sentido de consolidar as caixas que existem em Portugal, nomeadamente sob o umbrella, se preferirmos, da Caixa Central do cartel agrícola. Acha que essa consolidação faz sentido ou faz sentido apenas naqueles casos em que os players não têm músculo, por exemplo, para investir em tecnologia e para se poderem modernizar, por exemplo?

As cooperativas de crédito só se concentram quando têm problemas. Ou seja, no caso, por exemplo, do Rabobank, holandês, eles passaram a ter uma licença única, porquê? Porque eram 1200 cooperativas de crédito e não estavam capitalizadas. Então, a única forma que tiveram foi de criar uma cooperativa com diversos graus de participação, muito descentralizada, e construíram uma licença única. Se nós olharmos para o Credit Agricole francês, a questão surgiu quando eles quiseram ocupar muito rapidamente o espaço da banca comercial. E aí também não tiveram um grande sucesso, porque esta banca tem uma determinada lógica que não é possível ser contrariada.

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