Todos os anos 2500 pessoas que já tiveram cancro voltam a ter a doença
A Agência Internacional para a Investigação do Cancro, da Organização Mundial da Saúde, divulgou nesta quarta-feira novos dados sobre o cancro a nível mundial. E os dados dão que pensar: só neste ano deverão ser registados mais de 18 milhões de novos casos e deverão ocorrer mais de 9,6 milhões de mortes. Ou seja, um em cada cinco homens e uma em cada seis mulheres devem ser afetados pela doença ao longo da sua vida. E um em cada oito homens e uma em cada 11 mulheres poderão morrer vítimas de cancro. Mas em todo o mundo estima-se que o número de pessoas vivas após cinco anos do diagnóstico é de 43,8 milhões. O sucesso dos tratamentos é cada vez maior. Mas até este sucesso tem um preço: o risco acrescido de poder desenvolver-se a prazo um segundo ou até um terceiro cancro. O diretor do Programa Nacional de Doenças Oncológicas sublinha: "O cancro tem de ser visto cada vez mais como uma doença a evitar e a ultrapassar."
Os dados hoje divulgados pela Agência do Cancro da Organização Mundial de Saúde estão de acordo com o que se esperava, ou alteram a realidade mundial?
Estão de acordo com o que se estava à espera, tendo em conta o envelhecimento da população. O relatório refere que o aumento do cancro a nível mundial vai ocorrer essencialmente na Ásia, em África e na América Latina. E é isso que já era esperado.
Porquê?
Por dois motivos: Ásia e América Latina são das regiões com maior densidade populacional. É aqui que vivem mais de 60% da população mundial. Portanto, é natural que o crescimento da doença seja maior aqui do que em outras regiões do mundo. Relativamente a África, o que se passa é que estamos a assistir a um aumento significativo da esperança média de vida da população. O combate às doenças infecciosas, nomeadamente malária e VIH, as campanhas pela vacinação e o acesso a alimentos e a água potável têm vindo a ter uma importância significativa neste continente, correspondendo a um aumento da esperança média de vida. Logo, a um aumento das chamadas doenças da civilização, entre elas o cancro.
E qual é o segundo motivo?
É a alteração dos hábitos de vida das populações destas regiões, nomeadamente no que respeita ao consumo de tabaco, que tem vindo a aumentar. Enquanto nos países ditos mais desenvolvidos economicamente - como nos EUA e na Europa, embora mais nos países do Norte do que nos do Sul - se tem vindo a assistir a um declínio no consumo do tabaco e, por consequência, a um declínio do cancro do pulmão. Na Ásia, em África e na América Latina está a viver-se precisamente uma realidade oposta. A tendência é o aumento do consumo de tabaco e do cancro do pulmão.
O relatório refere que a Europa deverá registar 23,4% de novos casos, tendo este continente menos de 10% da população mundial, este dado não continua a ser muito elevado?
Não. A esperança média de vida na Europa é muito maior do que nos outros continentes. Quando se compara continente a continente é preciso pensar na esperança média de vida de cada um. A da Europa é muito superior à dos países asiáticos ou africanos, embora haja países como Japão, Singapura, Coreia do Sul que tenham uma esperança média de vida idêntica à europeia, mas quando esta é analisada em termos de continente a média é muito mais baixa. Na Europa, neste momento, temos um número muito significativo de pessoas octogenárias e até centenárias. Isto leva a que a incidência de cancro neste continente continue a ser elevada. Mesmo assim, o relatório aponta que a nível mundial um em cada cinco homens e uma em cada seis mulheres desenvolvam cancro em alguma fase da sua vida, e o que está previsto há muito tempo é que a tendência a curto prazo seja a de que 50% da população mundial seja diagnosticada com cancro.
Quanto maior for a esperança média de vida maior é o risco de cancro...
Se estamos vivos, podemos ficar doentes. Por isso, quanto mais vivemos maior é o risco de contrair doenças. Se as pessoas não morrem de enfarte do miocárdio, e ainda bem que não morrem, porque temos tido capacidade para reduzir estas mortes, terão de morrer por outra coisa qualquer. Continuamos vivos e como tal podemos vir a desenvolver um primeiro tumor, um segundo ou até um terceiro cancro.
Hoje não está garantido que quem já teve um cancro não volte a ter um segundo ou até mais?
É verdade. Essa é a realidade de hoje. De acordo com os dados que temos, os doentes que em Portugal desenvolvem mais do que um tumor já são cerca de 5%. O que quer dizer que dos 50 mil novos casos que se registam por ano, 2500 são doentes que já tiveram um diagnóstico de cancro.
Como se sentem os doentes e se transmite um diagnóstico que já foi vivido?
O doente tem uma sensação de dupla injustiça. Mas hoje sabe-se que pelo facto de se ter um tumor a probabilidade de ter um segundo é maior. E é por dois motivos. Em primeiro lugar, porque se a pessoa reuniu condições para desenvolver um é natural que mantenha essas condições e que desenvolva outro.
Porquê?
Por exemplo, no caso do cancro do pulmão. Não se fuma só com um lado do pulmão, fuma-se com o pulmão todo e com a árvore respiratória toda. Uma pessoa que tenha um cancro relacionado com o tabaco, como da boca, esófago, pâncreas, etc., tem um risco maior de desenvolver outro cancro porque ao longo do tempo reuniu as condições que levaram o primeiro a aparecer. Sejam elas condições ambientais, genéticas, etc. A segunda questão tem que ver com o facto de alguns dos tratamentos usados num primeiro tumor aumentarem também o risco de aparecimento do segundo. Este é um bocadinho o preço que pagamos pelo sucesso nos tratamentos. E quando temos sucesso o doente fica vivo, mas com o risco de poder desenvolver um novo tumor.
Como é que um profissional lida com a situação?
Tentamos minorá-la. Tentamos uma vigilância mais apertada destes doentes. Tentamos diagnosticá-los o mais cedo possível. Tentamos promover estilos de vida saudável. Com os meus doentes sou muito enfático ao explicar-lhes: mesmo que o tumor que têm nada tenha que ver com o tabaco, é muito importante que após um diagnóstico destes deixem de fumar e que optem por estilos de vida saudáveis. É mais importante para um doente oncológico deixar de fumar do que para uma pessoa que nunca teve qualquer problema deste tipo, porque o risco que o doente oncológico tem de desenvolver um segundo tumor é muito maior. Adotar um estilo de vida saudável é muito mais importante para doentes com história oncológica. De resto, da parte dos profissionais é tentar tratá-los o melhor possível.
Em relação aos doentes mais novos este risco também existe?
Existe. Por isso é que em relação ao cancro pediátrico somos hoje muito mais seletivos nos tratamentos que escolhemos para diminuir a toxicidade a prazo e o risco de desenvolver um outro tumor mais tarde.
Isto implica que a doença oncológica comece a ser olhada de outra forma?
Há doenças oncológicas que são crónicas e outras não. Há doenças que são agudas. Por exemplo, as leucemias agudas, se não forem rapidamente tratadas, podem ser fatais. O cancro não é uma doença, são muitas doenças, mas a nossa atitude perante o cancro também já não é a mesma de há 30 ou 40 anos. Para a maioria dos casos, a doença já não é uma sentença de morte. Mais de metade dos doentes com diagnóstico de cancro não morrem de cancro, acabam por morrer de outras coisas. Isto quer dizer que em mais de metade dos casos diagnosticados conseguimos ter sucesso no controlo da doença, não só imediatamente mas também a prazo. Em relação aos casos em que não conseguimos erradicar completamente a doença, o que acontece é que as pessoas mesmo doentes vivem cada vez mais. O nosso objetivo não é tornar as pessoas imortais. Isso não somos capazes de fazer, o nosso objetivo é fazer que vivam melhor e vivam mais.
Portugal é considerado um campeão da sobrevivência. Tem que ver com os estilos de vida, com os tratamentos...
Tem que ver com várias coisas. Mas se calhar o fator mais importante é o de sermos um povo que, em relação ao resto da Europa, tem uma taxa de consumo de tabaco relativamente baixa. O que faz que os cancros relacionados com o tabaco - que são dos mais agressivos, o pâncreas, por exemplo - tenham um peso menor na nossa população do que na de outros países. Outro motivo terá que ver eventualmente com os profissionais que temos, que são bons, e com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) que temos. É um serviço com cobertura universal, não escolhe cidadãos. Todos têm acesso aos mesmos cuidados. Há uma centralização grande no tratamento do cancro. Mais de metade dos doentes são tratados em grandes hospitais ou em grandes centros oncológicos, o que faz que haja pouca variação em termos de cuidados ao longo do país. Poderá haver fatores associados à dieta mediterrânica que nos beneficiem em termos de sobrevivência, mas não é disso que estamos a falar.
Os últimos dados revelam 50 mil novos casos por ano e uma taxa de mortalidade estacionária - 27 316 mortes, no último ano em que foi contabilizado. Isto está dentro da média europeia?
Até está abaixo. De acordo com a taxa de mortalidade padronizada para a população europeia, o valor para o número de óbitos tem sido estável nos últimos quatro anos.
Estamos bem colocados...
Estamos, mas temos de continuar a lutar. Ou seja, queremos estar melhor.
O relatório da Agência da OMS divulgado hoje diz que o cancro do pulmão continua a ser um dos mais graves e que o aumento do número de casos nas mulheres é "mesmo uma preocupação significativa". Isto deve-se ao tabaco ou a outro fator?
Ao tabaco. Ou seja, antes a diferença do cancro de pulmão entre o sexo masculino e feminino era muito grande, hoje não é tanto assim. Continuamos a ter mais mortalidade no sexo masculino do que no feminino, mas a diferença que já foi de quatro a cinco vezes maior é agora de três. Está a diminuir. Vemos isto nas camadas mais novas, adolescentes, em que o consumo de tabaco entre rapazes e raparigas é quase igual. Isto leva a que as consequências comecem a ser semelhantes.
Isto é a nível mundial. Portugal não foge à regra?
Não. E a nossa preocupação de técnicos tem sido a de direcionar as campanhas de informação para o sexo feminino e para os adultos jovens e adolescentes. É nesta idade que temos de motivar o abandono do tabaco.
As campanhas de informação não têm funcionado?
Têm e até há alguma eficácia, mas há que olhar para o tabaco como uma toxicodependência, não é um ato livre. As pessoas falam muito da liberdade de fumar, não há liberdade em fumar. O fumar é um ato compulsivo. Tem de haver alguma modificação cultural em relação ao tabaco. Não podemos aceitar o tabaco da maneira que o aceitamos, temos de o condenar culturalmente. Sobretudo porque as alterações culturais não se impõem, são coisas que dependem da literacia e da educação. O combate que temos vindo a fazer tem décadas. E temos um inimigo muito grande do outro lado, com interesses económicos. Mas temos de continuar a combater esta tendência em Portugal.
Qual é o caminho para melhorar a prevenção e o tratamento do cancro
O nosso objetivo é alargar o rastreio do cancro colorretal, já está a ser feito, mas é uma das áreas em que podemos ganhar a nível da mortalidade, aumentar os hot spots das campanhas contra o tabagismo e melhorar o acesso dos doentes aos cuidados. Por outro lado, há que continuar a investir no SNS, é a maneira que temos de assegurar que todos os cidadãos são tratados de forma igual.
E quanto ao cancro da mama, o que se pode fazer?
Os cancros genéticos correspondem a cerca de 5% dos cancros da mama. Há alguns fatores importantes, um deles é a maternidade tardia, que leva ao aumento de risco de cancro da mama. O aumento da idade para a primeira gravidez é uma coisa que tem que ver com questões culturais e sociais e que tem vindo a registar-se em todas as sociedades ocidentais e, na minha opinião, isto está a ter um preço. Mesmo que continuemos a lutar para manter estável a mortalidade, o número de novos casos vai aumentar.
Por fim, e apesar dos números hoje divulgados a nível mundial, o cancro não pode ser visto como uma doença fatal?
Não é uma doença fatal. Cada vez mais o cancro tem de ser visto como uma doença a evitar ou a ultrapassar.