O que fazer com dez mil milhões de beatas? Tijolos, papel e pranchas de surf
A cada minuto, sete mil beatas são deitadas para o chão em Portugal. Isto quer dizer que, anualmente, cerca de 3,7 mil milhões de filtros de cigarros são descartados de qualquer maneira pelos portugueses, aproximadamente 35% do total de cigarros consumidos por ano no país. De acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), os fumadores portugueses representam 20% da população e consomem, em média, 10,5 mil milhões de cigarros por ano.
Focado no impacto ambiental das pontas dos cigarros, que se estima que contenham mais de 4000 substâncias químicas no seu interior, o PAN (Pessoas-Animais-Natureza) quer acabar com as beatas na rua, através de medidas como ações de sensibilização e sanções para fumadores. Ao mesmo tempo, surgem cada vez mais organizações nacionais e internacionais que querem dar-lhes uma segunda vida, com projetos que vão desde a construção ao surf.
A estimativa apresentada no início do texto é das organizações Beata no Chão Gera Poluição e Portugal sem Beatas e é citada pelo PAN no projeto de lei que será votado nesta quarta-feira na generalidade. "É um número bastante otimista. Acredito que o número de beatas atiradas para o chão até será superior", assume Diogo Raposo, fundador da Beata no Chão Gera Poluição, que desde 2016 se dedica a ações de recolha de beatas e sensibilização. Fala-nos de um "problema de poluição brutal" para o qual é preciso alertar os portugueses. "Temos de pôr as pessoas a par do problema e do efeito que este tem nelas próprias."
Esse é um dos objetivos do projeto de lei do PAN, que preconiza ações de sensibilização dirigidas aos fumadores, mas também obrigações para o setor da restauração como a disponibilização de cinzeiros à porta dos estabelecimentos e a limpeza diária do espaço envolvente. "Mais de 80% dos fumadores dizem que atiram beatas para o chão por falta de infraestruturas e equipamentos para o efeito", justifica o deputado André Silva, destacando que a proposta prevê um período de transição para implementação das medidas.
Entre outras substâncias, "uma beata contém alcatrão, nicotina, arsénio, monóxido de carbono, benzeno, cianeto e acetato de celulose, que é plástico". "A sua degradação é extremamente lenta", frisa André Silva, destacando que quando as pontas não são depositadas corretamente, os químicos "passam para a terra e para as linhas de água e acabam por contaminar solos, recursos hídricos e organismos vivos". Em ultima instância, alerta, "entram na cadeia alimentar".
De acordo com o The TerraMar Project, a nível mundial são deitados para o chão 2,3 milhões de beatas por minuto. Ao DN, Paula Sobral, presidente da Associação Portuguesa de Lixo Marinho (APLM), diz que as pontas de cigarros "são o resíduo que mais aparece nas praias"e representam "um dos principais problemas [de lixo] no sul da Europa". Existem várias estimativas sobre o tempo de decomposição. "Há uma que diz que demora entre um e cinco anos, mas há outra que diz que pode levar até 20", indica a professora da Universidade Nova de Lisboa. Apesar disso, uma grande parte dos fumadores "não sabe que o filtro dos cigarros não é degradável".
Embora até dê direito a multas em alguns municípios, como veremos mais à frente, "tem sido socialmente aceite" atirar beatas para o chão. "As pessoas cresceram na lógica de que é pequeno e não faz mal", lamenta a investigadora do MARE - Centro de Ciências do Mar e do Ambiente. Neste momento, encaminhar todas as beatas para os caixotes do lixo seria um passo bastante importante para reduzir o seu impacto ambiental. Paula Sobral explica que ainda "não existe um reaproveitamento verdadeiro das beatas", até porque este é complicado. "A sua utilização será restrita. Como é um material contaminado, não pode estar em contacto com o corpo humano", explica.
Nos últimos anos, várias organizações têm vindo a desenvolver esforços para a recolha de beatas em Portugal. Em maio, por exemplo, um grupo de 600 pessoas, entre alunos, professores e voluntários, reuniu-se em Aveiro, com o apoio da associação BioLiving, e recolheu mais de 80 mil beatas em apenas uma hora nas ruas da cidade.
Desde 2016, David Figueira, de 30 anos, armazenou mais de 250 mil beatas, que agora vão ser usadas para fazer tijolos sustentáveis. Depois de criar copos reutilizáveis, o jovem decidiu, em 2015, desenvolver ecocinzeiros de bolso, a partir de rolhas de cortiça e cana. Surgia, assim, a rede Biatakí. Mais tarde, criou cinzeiros de exterior e, posteriormente, lançou kits de recolha de beatas, com potes de café reutilizados.
"Começámos a fazer recolhas em 2016 na região de Lisboa", recorda, destacando que se comprometeu a armazenar todas as pontas de cigarro até ter uma solução de reciclagem. "O objetivo era ter um projeto de reciclagem próprio ou de outros, mas que fosse sustentável", lembra David. Essa solução foi encontrada recentemente, numa parceria com o Laboratório da Paisagem de Guimarães, e passa pela criação de tijolos sustentáveis.
O E-tijolo, projeto que prevê a incorporação de beatas em materiais de construção, nomeadamente em tijolos, está a ser desenvolvido por três entidades: Laboratório da Paisagem de Guimarães, Centro de Valorização de Resíduos (CVR) e Instituto de Soldadura e Qualidade (ISQ). Quem fornece as beatas é o Laboratório, que em 2015 criou o projeto EcoPontas. "São estruturas com um design diferente e que chama a atenção para recolher as beatas", conta Nuno Silva, responsável pela área de hidráulica e ambiente do Laboratório. Desde então, o engenheiro civil estima que tenham sido recolhidas aproximadamente 350 mil pontas de cigarros na cidade.
Agora, as beatas recolhidas no concelho vão servir para fazer tijolos. Após vários testes, a equipa chegou ao protótipo final: "Cerca de 5% da composição dos tijolos são pontas de cigarros. É a percentagem ótima para não comprometer a resistência da peça", revela Nuno Silva. Entre as vantagens, o E-tijolo apresenta-se como um produto mais leve, com melhores propriedades de isolamento e que reduz em 60% o consumo de energia necessária para a sua produção.
No Brasil, a Rede Papel Bituca, que reúne organizações não governamentais e empresas sociais, faz recolha seletiva de beatas - bitucas, como são conhecidas - e transforma-as em papel, que é utilizado para confecionar artigos ecológicos.
Já a empresa norte-americana Terracycle também recolhe beatas e embalagens para reciclagem nos EUA. Separadas de acordo com a sua composição, são derretidas para ser transformados em plástico duro, que pode ser usado para fazer novos produtos industriais reciclados, como paletes de plástico. As cinzas e o tabaco também são separados e sujeitos a um processo de compostagem.
Mas as novas utilizações para as beatas não ficam por aqui. Taylor Lane, surfista da Califórnia, construiu uma prancha de surf, com cerca de oito quilos, com dez mil beatas que recolheu nas ruas da sua cidade. Um projeto que lhe valeu o primeiro prémio do concurso anual Creators & Innovators Upcycle Contest de 2017.
Em Portugal, não existe recolha seletiva de beatas, pelo que estas são tratadas como um resíduo indiferenciado. Susana Fonseca, da Zero - Associação Sistema Terrestre Sustentável, diz que olha "com abertura, mas também com alguma desconfiança para as iniciativas de reciclagem de beatas". Ressalvando que este não é um tema sobre o qual a organização se debruce, lembra que as pontas dos cigarros "são um produto contaminado". Embora o sejam "em baixas dosagens", muitas beatas juntas "terão uma concentração diferente" de produtos químicos.
Se o aterro for bem gerido, diz a ambientalista, "a deposição em aterro pode ser a melhor solução". Outra alternativa é a incorporação deste resíduo em matéria para valorização energética, permitindo a produção de energia. "Mas o valor e a quantidade que tem de ser recolhida pode não tornar viável uma solução de valorização que não seja a deposição em aterro", afirma Susana Fonseca, sublinhando que "o passo mais importante é que as pessoas percebam que as beatas não são para deitar para o chão".
Entre as várias medidas previstas no diploma que é votado nesta quarta-feira, o PAN sugere a aplicação da "responsabilidade alargada do produtor", prevista na proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à redução do impacto de determinados produtos de plástico. Para os produtores de tabaco, o partido destina uma "ecotaxa", com vista a custear ações de sensibilização, formação, limpeza e recuperação de ecossistemas.
Do lado do fumador, o PAN prevê ainda "o sancionamento da ação de descartar as beatas para o meio ambiente". Segundo André Silva, o descarte inadequado de beatas na via pública deverá constituir "uma contraordenação ambiental leve, e é punível com coima nos termos da Lei n.º 50/2006 de 29 de agosto".
"A ideia é que haja um efeito dissuasor. O facto de a conduta passar a constituir uma contraordenação, juntamente com a ecotaxa e com as ações de sensibilização, deverá começar a criar uma maior consciência nas pessoas de que passa a ser menos aceitável este tipo de ações", diz o deputado ao DN.
Neste momento, já existem alguns municípios onde atirar beatas para o chão implica o pagamento de uma coima. De acordo com um levantamento feito pela Deco - Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor, no Funchal estão previstas coimas até 50 euros, enquanto na cidade de Leiria as coimas podem ir de 100 até 500 euros, quando a infração é praticada por pessoas singulares, ou de 200 a 1000 euros, quando praticada por pessoas coletivas.
Já em Oeiras, "lançar para o chão beatas de cigarros, charutos e outros cigarros, bem como maços de tabaco vazios", constitui contraordenação punível com coima de 50 a 1000 euros para pessoas singulares e chega aos 8000 euros no caso de pessoas coletivas.
Em Lisboa, as alterações ao Regulamento de Gestão de Resíduos, Limpeza e Higiene Urbana, aprovadas em janeiro, incluem novas contraordenações, entre as quais para quem lançar beatas ou pastilhas elásticas ao chão, com coimas que podem chegar aos 15 000 euros.