Matemática "está feita só para alguns". Peritos propõem novo plano curricular criado do zero

Ministério da Educação criou um Grupo de Trabalho de Matemática que propõe 24 recomendações ao plano curricular da disciplina. Em entrevista ao DN, a presidente da Associação de Professores de Matemática disse que o programa atual está "desadequado" relativamente à realidade nacional, mas também internacional.

Acabar com o que existe e criar do zero um novo plano curricular de Matemática nas escolas. É o que sugere a primeira parte do relatório concretizado pelo Grupo de Trabalho de Matemática (GTM), a pedido do Ministério da Educação, com 24 recomendações para o ensino da disciplina. Segundo a presidente da Associação de Professores de Matemática (APM), "a Matemática ainda é muito formalista e afasta os alunos da disciplina desde cedo". "Foi montada sob um olhar muito seletivo e estigmatizante. Está feita só para alguns", alerta Lurdes Figueiral, em entrevista ao DN.

O relatório está agora em discussão pública e põe em questão quer as reformas aprovadas pelo ex-ministro Nuno Crato quer as idealizadas pelo atual dirigente da pasta da educação Tiago brandão Rodrigues. Nesta primeira versão, os peritos que integram o GTM defendem uma "elaboração urgente de um currículo de Matemática para todos os ciclos de escolaridade", desde o 1.º ao 12.º ano de escolaridade, que substitua todos os programas e metas em vigor.

Uma medida "necessária", na perspetiva da dirigente da APM. "Só assim se garante três pontos fundamentais: articulação do 1º ao 12º ano; adequação aos níveis de ensino, necessidades de alunos e diferentes ofertas de percursos escolares; e coerência nos programas."

Mas também uma adequação aos programas internacionais, dos quais, "em alguns casos, estamos muito distantes". Os especialistas que integram este grupo de trabalho consideram que o novo currículo deve ser desenhado tendo em conta vários aspetos, como as orientações curriculares de países "cujos alunos apresentam elevado sucesso em Matemática". No relatório, está referenciado o caso de algumas regiões dos EUA, "em que prevalece a compreensão e o desenvolvimento pelo gosto da Matemática desde o 1º ano", conta Lurdes Figueiral. "Aliás, há um aspeto muito importante [nestas localidades], que é a preocupação pelos anos do pré-escolar" e que a presidente considera ainda não existir em Portugal.

"As variações de média [nos exames nacionais], apesar de ter passado de negativa para positiva, não são significativas. Ainda há 20% dos alunos do ensino básico com nível 1 no exame e isto é indicador dos alunos que desistiram da matemática há muito tempo."

Um pouco por todo o país e ao longo dos vários anos de escolaridade, a mancha de alunos desinteressados ou com graves dificuldades à disciplina é uma preocupação para os professores que a lecionam. O acumular de "problemas no ensino português", fruto de várias reformas feitas à onda das diferentes legislaturas, é o que "justifica a criação deste grupo de trabalho". "A nossa entender, o curriculo está desadequado. Houve uma preocupação durante o tempo da ex-ministra da edicação Maria de Lurdes Rodrigues, com o Plano de Ação para a Matemática, mas foi suspensa durante a tutela de Nuno Crato", aponta a dirigente da Associação de Professores de Matemática (APM).

E nem os resultados positivos registados nos exames nacionais deste ano iludem as estatísticas. "Os resultados nos exames devem-se exclusivamente ao tipo de exame. As variações de média, apesar de ter passado de negativa para positiva, não são significativas. Ainda há 20% dos alunos do ensino básico com nível 1 no exame e isto é indicador dos alunos que desistiram da matemática há muito tempo."

Sobre a avaliação das aprendizagens dos alunos, o Grupo de Trabalho de Matemática recomenda práticas de avaliação formativa nas aulas de Matemática, "contribuindo para a aprendizagem matemática e não possibilitando a retenção sem ser nos finais de Ciclo".

Na avaliação externa, recomenda-se que as provas sejam alinhadas com os focos essenciais da aprendizagem matemática e ainda que sejam comparáveis ao longo do tempo. A garantia dessa comparabilidade deve ser assegurada nas provas de aferição e não nos exames, lê-se no relatório que analisou um conjunto de documentos produzidos ao longo dos últimos trinta anos em Portugal.

"Todos os alunos têm capacidade para aprender Matemática. A forma de chegar lá é que não é única."

Um currículo adaptado a cada escola

Uma das principais formas de combate ao insucesso escolar na Matemática poderá mesmo passar pela autonomia das escolas, explica Lurdes Figueiral. "Todos os alunos têm capacidade para aprender Matemática. A forma de chegar lá é que não é única."

Por isso, a recomendação principal deste relatório passa pela criação de um curto programa curricular nacional que possa ser adaptado à realidade de cada escola. Primeiro, desenha-se um currículo de Matemática a nível nacional, que definirá o "núcleo comum para todos os alunos", no qual ficam estabelecidos objetivos, conteúdos matemáticos que todos deverão aprender, orientações metodológicas, recursos a usar e avaliação a praticar.

Depois, a nível local, as escolas ou agrupamentos de escolas podem detalhar e complementar o currículo nacional "atendendo às especificidades dos seus contextos" desenhando os seus próprios "documentos curriculares locais", lê-se no documento.

O GMT acredita que os documentos curriculares locais pensados pelos professores vão permitir adequar o ensino "à diversidade dos alunos e às especificidades dos contextos". "O princípio da flexibilidade curricular e da autonomia das escolas será assim garantido, bem como a possibilidade de criação de contextos favoráveis ao desenvolvimento das competências indicadas no Perfil dos Alunos", refere ainda o relatório.

"Ou a escola incorpora a internet na aprendizagem, ensino os alunos a lidar com ela, ou estamos condenados"

A tecnologia como arma para sucesso escolar

Se não podes vencê-los, junta-te a eles, como diz o ditado. É inspirado nele que o relatório recomenda uma aposta nas ferramentas tecnológicas como arma para ensinar e aprender. O uso da internet, por exemplo, deve ser visto como um aliado.

"Devem considerar-se recursos tecnológicos a que todos os alunos podem aceder livremente, como calculadoras, aplicações disponíveis na Internet, software para tratamento estatístico, para cálculo algébrico simbólico, para geometria e funções, para modelação. A Internet deve constituir-se como fonte importante de acesso a informação ao serviço ao serviço do ensino e aprendizagem da Matemática. Devem também considerar-se materiais manipuláveis que favoreçam a compreensão de conhecimentos matemáticos e a conexão entre diferentes representações matemáticas", lê-se.

Segundo a dirigente da APM, o recurso á tecnologia "é algo incortornável" no ensino. "Ou a escola incorpora-a na aprendizagem, ensino os alunos a lidar com ela, ou estamos condenados", remata.

Além da análise do currículo da Matemática, o documento apresenta também recomendações sobre as dinâmicas de desenvolvimento curricular, avaliação das aprendizagens dos alunos e formação incial e contínua de educadores e professores. Para o GMT, os processos de mudança curricular devem ser acompanhados por dispositivos de regulação e apoiados com programas de formação de educadores e professores e com recursos adequados.

A presidente Lurdes Figueiral espera que as recomendações apresentadas sigam em frente, mas sobretudo que a sua conclusão "não dependa de várias legislaturas". "A estabilidade curricular é fundamental."

O debate sobre as recomendações deste relatório está aberto ao público e qualquer associação ou organização tem um prazo de três meses para apresentar um parecer sobre o documento ao Ministério da Educação.

A Associação de Professores de Matemática está a unir esforços para o fazer até finais de outubro. A presidente Lurdes Figueiral espera que as recomendações apresentadas sigam em frente, mas sobretudo que a sua conclusão "não dependa de várias legislaturas". "A estabilidade curricular é fundamental."

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