Vida e Paz. Não é só uma festa de Natal: é "um recomeço"
Nas traseiras da cantina velha da Cidade Universitária, em Lisboa, as equipas de cozinha já começaram os preparativos dos três dias de festa de Natal da Comunidade Vida e Paz. Há pilhas de caixas de alimentos por todo o lado - bacalhau, bolo-rei, conservas, sumos, frutas, bolachas e chocolates - e os camiões continuam a chegar.
Perto dali, junto a uma das entradas de serviço, os voluntários convergem para uma pequena tenda que cumpre o papel de bengaleiro e de zona de pausa, onde é possível parar para comer uma bolacha ou beber um copo de água. Lá dentro, na festa, ninguém circula com objetos de valor à vista, nem consome qualquer tipo de alimentos, para evitar qualquer tipo de atrito. "Estamos ao serviço dos nossos convidados", explica Cami, uma das coordenadoras da festa e nossa cicerone pelos vários pontos desta celebração, que acontece pelo 30.º ano consecutivo.
O termo "convidados" não é um eufemismo simpático para caracterizar quem comparece na festa, sobretudo sem-abrigo mas também pessoas que já estão a dar a volta às suas vidas ou que beneficiam de outro tipo de apoios da instituição. Nos primeiros dois dias, todos os que vêm foram especificamente convidados pelas equipas de rua que fazem as rondas noturnas da cidade ou por outros voluntários. Só ao terceiro dia o almoço de Natal é aberto a todos os que queiram entrar. E o que é oferecido aos convidados vai muito além de uma boa refeição, entretenimento e convívio.
No primeiro andar, na área dedicada à saúde, além dos exames médicos de diagnóstico, os convidados têm acesso a vacinação contra a gripe, rastreios de diferentes doenças, prescrição de medicamentos e apoio na sua obtenção, caso não tenham meios para os comprar.
Ao lado, o espaço Cidadania é uma verdadeira loja do cidadão em ponto pequeno, onde estão representadas entidades como a Segurança Social, a Santa Casa da Misericórdia, alcoólicos e narcóticos anónimos, advogados que dão apoio jurídico pro bono e até - um dos serviços mais requisitados - uma mesa do Instituto dos Registos e do Notariado que permite tratar na hora do Cartão do Cidadão.
Hugo Rocha, 34 anos, acaba precisamente de tratar da substituição do seu documento de identificação, que já estava literalmente feito em pedaços, e prepara-se para se dirigir para a zona de lazer. "Venho sempre, desde que me lembro", conta. "Também aproveito para tratar de documentação mas o que me traz cá é mesmo o convívio. Agora já tenho uma casa alugada, mas a Comunidade Vida e Paz é uma instituição que nunca me deixou".
Paulo Rodrigues, 53 anos, aponta orgulhoso para um conjunto de espelhos, com molduras decoradas e pintadas, à venda numa pequena banca de recordações da instituição. "Parece madeira, não é? Mas fizemos isto só com papel de jornal enrolado". Utente, há catorze meses, da Quinta da Tomada, um dos centros de recuperação da comunidade, chegou lá depois de mais de década e meia a viver intermitentemente nas ruas ou em abrigos provisórios.
Natural da Póvoa de Lanhoso, emigrou com os pais para França muito novo, mas acabou por perdê-los e crescer "sem famílias, a viver em instituições até aos 18 anos". Em 2001 acabou "expulso de França", regressando para um país onde não tinha rede. A rede que finalmente diz ter encontrado. Ao ponto se sentir pronto para voltar a enfrentar o mundo. "Já estou na fase de organização da minha saída e estou tranquilo", garante. "De lá ninguém sai de mãos a abanar. Sei que vou ter um sítio para dormir, um trabalho. Espero poder ser serralheiro, que é aquilo para que estudei lá em França.
A área de distribuição de roupa, mais do que um simples ponto de recolha de bens, está montada para parecer uma verdadeira boutique onde os "clientes" podem escolher livremente os artigos que preferem, dentro da quota que os donativos recebidos permitem atribuir a cada um. "Neste ano, como é a trigésima festa, quisemos fazer uma coisa especial e temos uns mimos", conta Céu, uma das responsáveis pelo espaço. Temos umas pulseiras para as senhoras, algumas amostras de produtos de beleza, um brinquedo para as crianças".
Não há registo de crianças a viverem na rua em Lisboa, até porque sempre que é sinalizado um caso entra em ação um mecanismo de resposta rápida. Mas há famílias carenciadas, apoiadas pela comunidade, que também vêm à festa. E na cantina até existe uma área infantil onde estas podem ficar, acompanhadas, enquanto os pais aproveitam para circular e eventualmente tratar de alguma questão.
Céu avisa-nos que a sua zona será uma das mais concorridas do dia. E não se engana. Meia hora depois das 14.00, hora de abertura de portas, já foram atendidas mais de 50 pessoas e a fila continua longa. "A roupa é uma das coisas muito importantes para as pessoas se sentirem bem. É comum encontrá-los no segundo dia com as roupas novas vestidas".
No meio da azáfama da escolha de roupas, distinguimos dois homens, um alto e um baixo, que comunicam entre si em língua gestual. Cami, que também tem estado a aprender a língua, dá-lhes uma ajuda. "Eles são surdos mas o homem mais alto está também a perder a visão. Para os compreender tem de lhes tocar nas mãos para distinguir os gestos", explica Céu. A coordenadora da secção de roupa está a contar-nos o efeito" transformador" que tem a experiência de lidar com estas realidades, com estas pessoas, quando passa por nós uma jovem voluntária em passo apressado, a tentar sem sucesso esconder o choro. "Mas também lidamos com muitas emoções, claro..."
Trabalhar a autoestima dos convidados é um dos objetivos fundamentais de todas as atividades. Porque pode ser o ponto de partida para o momento de regresso à sociedade. "Serve especialmente para dar esperança", resume ao DN Horácio Félix, diretor da Comunidade Vida e paz. "Depois, o caminho passa por muitas vertentes, porque a solução para uns não é necessariamente a solução para outros. Muitas vezes, as pessoas entram aqui sem documentos, maltratadas, de cabelo e barba comprida, e quando saem sentem que têm novamente uma identidade".
Vítor Gonçalves, 62 anos, sem-abrigo, olha-se ao espelho enquanto o barbeiro profissional lhe dá os últimos toques no corte de cabelo. A última vez que se sentou numa cadeira para alguém tratar de si foi naquela festa, há um ano. "Até cumprimentei o senhor Presidente da República", conta. Camionista de profissão - "andei pela Bélgica, Holanda, Alemanha..." -, viu-se no desemprego e depois na rua "vai fazer dez anos. Fui perdendo os amigos. A família não acredita em mim e por isso também não acredito neles". Mas no dia 4 de janeiro vai para a quinta da Comunidade Vida e paz na Venda do Pinheiro. "É um recomeço".
Entre os utentes da zona de higiene, a tomar banho, a receber cortes de barca e cabelo, a fazer manicure, há muitos homens e mulheres à procura do mesmo. E alguns que já o encontraram. Marco Paulo Domingues, 41 anos, já não precisava de ali estar. Mas nem lhe passava pela cabeça faltar. "Tenho a minha vida organizada, uma casa e um trabalho, sou supervisor, mas esta é a minha casa. A minha mãe pôs-me na rua quando tinha dez anos. Também não gostava dela, tratava-me mal. Fui sem-abrigo durante 25 anos. Tenho casamento marcado para o ano e a Comunidade Vida e Paz é que o vai organizar".
É frequente encontrar nos voluntários e trabalhadores quem tenha primeiro sido utente. João Ribeiro, que tem 51 anos mas garante sentir-se "com 38", foi sem-abrigo, debatendo-se com problemas de alcoolismo, até começar a ser apoiado pela instituição. Refez a vida, emigrou para o Brasil,"correu mal", e voltou a ser acolhido. Hoje é coordenador do Projeto Frescos com Vida, em que duas quintas terapêuticas da instituição produzem frescos de agricultura biológica que são depois vendidos em cabazes a empresas e entidades públicas. Na lista de clientes está a Presidência do Conselho de Ministros.
O seu projeto de vida é agora ajudar a demonstrar que não é um exemplo isolado: "Há tantas pessoas que por vezes têm a autoestima baixa, que as próprias famílias não lhes ligam, e se lhes dermos uma oportunidade, como a que deram a mim, elas fazem muitas coisas".
Ao longo dos três dias de festa, conta Nuno Fraga, um dos coordenadores-gerais, são esperadas cerca de 1500 pessoas e "há cerca de 1300 voluntários" para as acompanharem. É quase um voluntário por convidado. Porque o objetivo "é mesmo esse": fazer com que quem ali entra não se sinta mais um numa multidão. "Temos muitos números nesta festa mas aquele a que ligamos mais é o das pessoas que se deslocam ao que chamamos de Espaço Aberto ao Diálogo. É ali que vão as pessoas que decidiram que querem sair da rua, lidar com uma dependência, receber apoio psicológico. No ano passado foram 91 - sobretudo homens, a maioria dos casos que acompanhamos são homens. Neste ano não sei quantos serão. Mas se for um já é um sucesso".
As instituições têm vindo a alertar para a aparente falta de reflexos da melhoria da situação económica do país nos números da população sem-abrigo. "Temos notado nos últimos tempos uma estabilidade nos números. Não tem diminuído mas também não tem aumentado. Não se pode dizer que seja uma boa notícia", considera Nuno Fraga, que refere ainda o aumento, preocupante, "de casos que aliam dependências a problemas de saúde mental".
Orientar os convidados para o Espaço Aberto ao Diálogo, quando verificam que estes precisam de respostas específicas, é um objetivo presente na cabeça de todos os voluntários, mas particularmente na equipa de Motivação, que circula pela festa sem pouso fixo. "Nós somos um pouco os emplastros da festa", resume Pedro, membro desta equipa. "Andamos por todo o lado. Vamos à fila do barbeiro, lá está, vamos tentar perceber os problemas que o senhor António tem na sua vida. Mas não insistimos com as pessoas. Se elas querem pedir esse apoio, muito bem. Caso contrário, tentamos que se sintam bem enquanto cá estão".