Desaparecem 4000 pessoas por ano em Portugal. Muitos não querem ser encontrados
No início de fevereiro deste ano, Carlos Bairrada deixou de atender o telefone aos amigos e à família. Na véspera, falou com vários, via Messenger, e depois desligou o chat. Trabalhava como cozinheiro num restaurante de Óbidos, a mais de 120 km de distância da aldeia do Mogadouro (de onde é natural), no concelho de Ansião, do mesmo distrito de Leiria.
O restaurante esteve fechado para remodelação durante uns dias, e reabriu a 1 de fevereiro, uma sexta-feira. Mas Carlos já não apareceu. A família deu-o oficialmente como desaparecido um mês depois. Na sequência da falta de notícias (o que não era de todo invulgar, da parte dele), e sabendo que alguém o vira na zona de Palmela (Setúbal), pais e demais família procuram por ele durante todo o primeiro fim-de-semana. Contactaram as autoridades e, em desespero de causa, espalharam pelo FB um apelo, usando a própria conta do rapaz, figura conhecida em vários concelhos da região centro.
Era terça-feira de carnaval, dia 5 de março, e muitos julgaram tratar-se de uma partida. Ainda assim, a publicação depressa atingiu milhares de partilhas. A verdade é que Carlos (com a alcunha de Gato, para os amigos) estava bem, de boa saúde, e quando a PJ o encontrou, viu-se na iminência de cumprir a lei: ele fazia parte dos que não querem ser encontrados, com o direito (legal e constitucional) assegurado de ser mantida reserva - pelas autoridades - do sítio onde estão. Entretanto, acabou por reconsiderar e voltou a casa dos pais, no último fim-de-semana.
Durante algum tempo, Carlos Bairrada fez parte dos cerca de 4000 cidadãos que todos os anos desaparecerem em Portugal, ou melhor, em que o desaparecimento é reportado às autoridades. "É uma situação que não está completamente bem definida em termos legais", disse ao DN o inspetor-chefe Miguel Gonçalves, da Polícia Judiciária. O certo é que qualquer órgão de polícia criminal pode receber uma queixa por desaparecimento, embora em muitas situações "rapidamente se perceba que não". Aquele responsável recorda, por exemplo, o caso de Luís Grilo, o triatleta que no verão passado foi dado como desaparecido. Na verdade, a polícia já desconfiava de homicídio mesmo antes de ser encontrado o corpo.
Mas "às vezes são fugas, e não desaparecimentos". Terá sido esse o caso de Carlos Bairrada, e de tantos outros similares, que cortam o contacto com os que lhes são próximos, e somem. "Normalmente são adultos, que por alguma razão não querem ser encontrados. É uma ação voluntária, e por isso não podem ser obrigados a dizer onde e como estão", acrescenta o inspetor-chefe, sem prejuízo de todas "as medidas e ações tomadas pela polícia no sentido dos encontrar". "O que normalmente fazemos, quando conseguimos localizar essas pessoas, na sequência da queixa apresentada, é dizer-lhes que a família está à procura, e se nos autorizam a dar informação. Por vezes a única coisa que nos autorizam dizer é que está bem, e nada mais", esclarece o inspetor Miguel Gonçalves.
E se são as redes sociais as grandes aliadas na denúncia dos desaparecimentos, não admira que entretanto tenha nascido no Facebookuma página para "Desaparecidos em Portugal". Sara, uma jovem açoreana, criou-a em dezembro de 2015. "É uma página que serve apenas de partilha para que possa chegar mais longe a publicação de cada pessoa. Criei-a porque achei que era um assunto que ficava um pouco perdido nos feed notícias de cada pessoa...assim é mais fácil a procura e a partilha", respondeu ao DN. Por lá continuam as publicações que aludiam ao desaparecimento de Carlos Bairrada, mas também a muitos outros: pessoas que emigraram para o estrangeiro e nunca mais deram notícias, imigrantes das ex-colónias que disseram ter vindo para Portugal mas nunca reportaram se aqui chegaram, idosos que desaparecerem dos lares ou de casa. Neste último caso, sobretudo quando se sabe que já não estão no uso de todas as faculdades mentais, o quadro é outro para a polícia - que avisa ou entrega os idosos às famílias. O mesmo acontece, não raras vezes, com adolescentes e jovens (menores) que deixam os centros ou lares de acolhimento, por exemplo.
No próximo sábado completam-se cinco meses desde que Mário Sousinha desapareceu, em Pombal, depois de uma discussão com a companheira. Os amigos e a família não conseguem encontrar justificação para o desaparecimento, que entretanto passou a ser investigado pelo departamento de homicídios da diretoria do centro da PJ. "Não porque houvesse algum indício de crime, mas porque dessa forma tínhamos outras ferramentas para poder investigar, para fazer novas buscas", disse ao DN o inspetor Camilo de Oliveira, que coordena a partir de Coimbra a Unidade de Crimes contra as Pessoas. Essa alteração aconteceu há cerca de dois meses, mas a verdade é que continua desconhecido o paradeiro de Mário Sousinha, funcionário de uma empresa de segurança privada. "Já não sabemos o que pensar. Mas eu acho que se o meu irmão estivesse vivo, já tinha aparecido. Ele nunca ficaria tanto tempo sem dar notícias", sublinha a irmã, Paula Sousinha, que mantém contacto permanente com as autoridades.
Porém, depois da primeira notícia publicada pelo DN, sobre este desaparecimento, amigos de Mário Sousinha revelaram a possibilidade de se tratar de uma fuga.Quando o assunto se tornou público, os amigos e antigos colegas de Mário Sousinha foram juntando peças e trocando informações. Um deles, Rogério Esteves, está convencido de que aqui "há duas hipóteses: ou ele fugiu, mesmo, ou então fizeram-no desaparecer". E explica porquê: "há uns meses, quando trabalhávamos juntos no Pombal Fashion (um mercado grossista), ele chegou-me a dizer que um dia desaparecia, fugia daqui. Andava com problemas em tribunal por causa da ex-mulher, e não via solução para aquilo. E então disse-me que tinha uns amigos em Espanha, pessoas que ele conhecia do negócio dos cães, que tinham meios para o fazer desaparecer".
Mais tarde, a conversa terá sido outra. "Na altura ele já andava com problemas com a companheira e queixou-se que havia dois tipos, sempre a rondar a casa. E que chegava a temer que lhe fizessem mal". Mas é a última conversa que tiveram sobre o assunto que agora matuta na cabeça de Rogério: "Se eu desaparecer vários dias, vocês vejam o que é que me pode ter acontecido".
"Ninguém vira fumaça. Ele tem que estar nalgum lado. Se estiver morto, o corpo tem de aparecer", considera a irmã, que chegou a deslocar-se ao Instituto de Medicina Legal, à procura de "algum corpo que pudesse ter aparecido e não fosse identificado", mas também daí veio sem respostas, que continua a procurar por toda a parte.
Mário Sousinha terá saído de casa "alterado", a 16 de outubro, depois de uma discussão com a companheira, Elsa Martins, com quem vivia há cerca de dois anos. Na queixa que a própria viria a apresentar na GNR, cinco dias depois, a 21 de outubro, consta que o fez "de livre e espontânea vontade". Alegadamente saiu de casa com 200 euros no bolso, a pé, só com a roupa que vestia. Horas antes, o colega Paulo Adão falou com ele ao telefone, entre as 19:15 e as 20 horas. Nesse dia, Mário fez o último turno, das 20:00 até à meia-noite, na empresa de segurança em que trabalhava. Foi a última vez que se apresentou ao serviço.
Em novembro de 2018, numa segunda-feira, dia 5, desaparecia o cantor Nuno Batista, de 40 anos, que encarnava nos palcos a personagem de Zé do Pipo. Há meses a lidar com uma depressão (a família contou mais tarde que lhe dora diagnosticada doença bipolar), o cantor saiu de casa, na zona de Óbidos, e disse à mulher que "ia ao banco e à farmácia". O carro acabaria por ser encontrado perto de uma ravina, junto ao Porto da Areia, em de Peniche (onde ironicamente a mãe o ensinou a nadar, em criança), no dia seguinte. É que Nuno Batista nunca mais atendeu as chamadas da mulher, Celeste, nem terá lido as mensagens que lhe enviou. Nas entrevistas que deu ao programa Linha Aberta, da SIC, a mulher mostrou-se sempre convencida de que Nuno se terá suicidado, face ao quadro depressivo em que se encontrava.
De resto, até ao psiquiatra Nuno terá confessado a intenção de se matar. É verdade que o corpo nunca apareceu, e os pais do cantor já por diversas vezes vieram a público lamentar o desinteresse das autoridades: a polícia marítima fez buscas para tentar encontrar o corpo, mas suspendeu-as ao cabo de um mês. As revistas cor-de-rosa foram alimentando outras versões - que falavam de uma hipotética fuga para o Brasil e de dívidas - mas a família nunca colocou essa hipótese, quedando-se pelo suicídio.
O caso do cantor Nuno Batista ficou apenas registado entre os cerca de 4000 desaparecidos que, anualmente, povoam as listas das autoridades. Como não havia indícios de crime, o Ministério Público não instaurou qualquer inquérito. E isso é que sucede "sempre que as circunstâncias que envolvem um desaparecimento, ou outros elementos disponíveis, criem a suspeita da ocorrência de crime", confirmou ao DN fonte da Procuradoria - Geral da República. O registo destes inquéritos é feito, justamente, por crime (por exemplo rapto ou sequestro).
"Nestas situações, em que estão reunidos os pressupostos/fundamentos que determinam a instauração de inquérito (art.º 262º do Código de Processo Penal), todas as diligências de investigação são enquadradas pelas normas processuais penais, o que permite o recurso aos meios e técnicas de investigação que se mostrem adequadas e exigíveis no caso". Assim se percebe, por exemplo, a transferência do caso de Mário Sousinha para outro departamento, conforme explicava o inspetor Camilo de Oliveira.
"Com vista a permitir a eventual necessidade de intervenção do Ministério Público nos casos que lhe é comunicado um desaparecimento, ainda que sem suspeitas, pelo menos iniciais, da ocorrência de crime, a Ordem de Serviço nº 4/15 adotou a espécie processual "pessoas desaparecidas" para efeitos de registo no CITIUS (portal da Justiça) das comunicações de pessoas desaparecidas em que não existam suspeitas de que o desaparecimento tenha na base a prática de um crime", adianta a mesma fonte.
Na verdade, a abertura de um processo decorre da necessidade de realização de diligências, "em especial das que contendam com direitos constitucionalmente protegidos". E embora as ações no sentido de apurar o paradeiro da pessoa desaparecida competirem, primeiramente, às entidades policiais, "deve o Ministério Público instaurar procedimento - que não inquérito - que lhe permita manter-se informado sobre o evoluir da situação e intervir sempre que se mostre necessário e exigível. Durante o ano de 2018, foram registadas 1911 comunicações desta espécie. Muitos ainda não apareceram.