Beijar: a diferença entre a saúde e a doença

Em época de pandemia, as regras do jogo social e afetivo são baralhadas. Quando beijos e apertos de mão se tornam ameaças à saúde pública, há que encontrar novas formas de diminuir a distância entre familiares e amigos.
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Por ordem do rei, os beijos estavam proibidos. No ano de 1439, enquanto a peste devastava Londres, Henrique VI decretou e os súbditos afastaram os lábios do próximo. Fossem singelos ósculos da paz durante a missa ou, pelo contrário, carregados de intencionalidade erótica, todos os beijos surpreendidos pelas autoridades estavam sujeitos a coimas ou mesmo, em casos recalcitrantes, às "delícias" da estada numa prisão medieval. A medicina da época podia saber muito pouco do comportamento de vírus e bactérias mas já se intuía que tais intimidades, sobretudo em época de escassa higiene, favoreciam a propagação do mal.

Tantos séculos depois, mas com a pandemia declarada, o que muda nos cumprimentos que trocamos social ou afetivamente? A psicóloga clínica Maria João Aguiar Martins considera que as mudanças importantes a ocorrer durante esta crise são mais profundas do que o temporário distanciamento social imposto pelas circunstâncias: "É evidente que quando retomarmos os nossos hábitos voltaremos aos beijos, abraços e apertos de mão porque essa é a matriz com que fomos criados. Foram gestos interiorizados na infância." Então o que pode mudar? "Esta reviravolta violenta e inusitada nas nossas vidas pode fazer-nos valorizar o que temporariamente perdemos: o toque de e no Outro. Na verdade, quantas vezes adiamos um encontro com amigos ou familiares? Quantas das pessoas com quem agora falamos na internet vimos pessoalmente nos últimos meses, até anos? Quantos dos beijos e abraços não foram apenas formas mecânicas de saudação?"

Alexandre Vieira Abrantes, professor da Escola Superior de Saúde Pública, equiparando o que vivemos a uma guerra ("o que nenhuma geração ainda viva em Portugal se lembra de ter vivido em território continental", sublinha), considera, por sua vez, que as mudanças de comportamento podem ser mais duradouras. "O ser humano tem uma enorme capacidade de adaptação e já o demonstrámos precisamente nesta crise. Por iniciativa própria, de um modo geral, as pessoas estão a tomar as medidas de segurança que se impõem. A verdade, porém, é que, mais tarde ou mais cedo, teremos de abandonar a quarentena para assegurar a nossa subsistência e a vida económica do país, mantendo ainda algumas medidas de distanciamento porque o coronavírus não vai desaparecer de um dia para o outro." Para Alexandre Abrantes é bem provável que algumas práticas do confinamento subsistam para além da sua necessidade: "Até aqui os contactos virtuais via Skype, WhatsApp, entre outras plataformas, eram sobretudo usados pelos jovens. De repente, vemo-los estendidos aos mais idosos, que, dessa forma, também falam com filhos e netos. Penso que essa será uma prática para durar."

Pestes, pragas e epidemias à parte, beijos e apertos de mão são provavelmente tão antigos como a espécie humana. Um dos testemunhos mais remotos do aperto de mão como forma de selar uma aliança política é um baixo-relevo datado do século IX a.C, que mostra o rei assírio Shalmaneser III a trocar esse gesto de confiança com um governante da vizinha Babilónia. Do Médio Oriente Antigo, a tradição, como tantas outras, passou ao mundo greco-romano. Para além de Homero o referir em várias passagens das epopeias Ilíada ou Odisseia, encontramos vários vestígios de tal cumprimento quer na arte funerária quer em moedas. A Idade Média, com o seu culto da cavalaria, encarregou-se de preservar o valor e simbolismo do gesto (confiança, amizade, estabelecimento de um acordo) até à atualidade.

A história do beijo é ainda mais complexa, já que frequentemente envolve uma carga emocional superior à cordialidade do cumprimento. Para muitos antropólogos, persiste mesmo a dúvida se este é um hábito cultural, logo adquirido, ou se nos é inato, já que é possível encontrá-lo também noutras espécies, nomeadamente nos chimpanzés pigmeus. O que parece estabelecido é que as tropas gregas comandadas por Alexandre, o Grande, ao entrarem na Índia, no século IV a.C, ficaram estupefactas com as mil e uma formas de beijar de que os naturais pareciam capazes. Da estupefação passaram ao interesse e trouxeram para o Ocidente vários tratados védicos, entre os quais o Kama Sutra.

Os romanos, peritos em adotar as boas práticas dos territórios que ocupavam, renderam-se às vantagens do beijo e passaram a diferenciá-lo conforme a zona do corpo e a pessoa a que se destinava: na mão ou na face (osculum), nos lábios (basium), mais profundo e apaixonado (savolium). Até mesmo um "deus na Terra" como o imperador podia receber beijos: na cara, de um familiar próximo, ou num pé, se se tratasse de um cidadão comum.

Na impossibilidade atual de troca beijos e apertos de mão, muitos optaram pela saudação oriental do namaste (comum entre hindus e budistas), habitualmente usada no yoga: as duas palmas das mãos juntas, encostadas ao peito em sinal de respeito pelo outro. Embora o Ocidente só tenha verdadeiramente descoberto o significado do gesto no século XX (sobretudo durante as negociações de Gandhi e Nehru com os britânicos pela independência da Índia), a verdade é que tem sido cada vez mais adotado à medida que as filosofias orientais vão conquistando cada vez mais adeptos na Europa e nos Estados Unidos.

Em tempos em que a ausência do toque pode significar a diferença entre a saúde e a doença, a segurança e a ausência dela, a etiqueta da saudação e do convívio reinventa-se. Mas a maior parte dos confinados já só sonha com os "abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim" da canção de Vinicius de Moraes. "Que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim."

* artigo publicado originalmente a 22 de março

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