As ligações perigosas de um médico à indústria farmacêutica
Um dos maiores especialistas em cancro, nos EUA, não divulgou que recebia vários milhões de empresas farmacêuticas. Esta relação direta com a indústria pode pôr em causa a ética das suas opiniões científicas e pôr em risco a confiança dos pacientes nas terapêuticas. Uma investigação do The New York Times em colaboração com a Propublica explica o caso do espanhol José Baselga
Um dos mais conhecidos médicos especialistas em cancro da mama do mundo não divulgou milhões de dólares em pagamentos de empresas farmacêuticas e de saúde nos últimos anos, omitindo estes seus laços financeiros em dezenas de artigos de pesquisa que publicou em revistas científicas de prestígio como The New England Journal of Medicine e The Lancet. José Baselga, espanhol, de 59 anos, é uma figura importante no mundo do cancro, e é o diretor clínico do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York. Ocupou cargos de chefia ou funções consultivas na Roche e Bristol-Myers Squibb, entre outras empresas, teve participação em start-ups para testar terapias contra o cancro e desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento de drogas que revolucionaram tratamentos para o cancro da mama.
De acordo com um trabalho do The New York Times e da organização de jornalismo de investigação ProPublica, José Baselga não seguiu as regras de divulgação financeira que são obrigatórias.
Numa conferência realizada este ano e, já antes, perante um grupo de analistas, Baselga deu uma avaliação positiva aos resultados de dois testes clínicos patrocinados pela Roche que muitos outros médicos consideraram dececionantes, sem revelar a sua relação com a empresa. Desde 2014, Baselga recebeu mais de 3 milhões de dólares da Roche em honorários de consultoria.
Baselga não contestou as suas ligações com pelo menos uma dúzia de empresas. Disse apenas que os lapsos de divulgação não foram intencionais.
Salientou que grande parte de seu trabalho na indústria é conhecido publicamente. "Eu reconheço que houve inconsistências, mas é o que é", afirmou. As extensas relações corporativas de Baselga - e sua frequente omissão em divulgá-las - ilustram a permeável fronteira entre a pesquisa académica e a indústria.
Na década passada, uma série de escândalos envolvendo a influência secreta da indústria farmacêutica na pesquisa de medicamentos levou a comunidade médica a reforçar os seus requisitos de divulgação de informações sobre conflitos de interesse. Os especialistas em ética temem que as complicações externas possam moldar a maneira como os estudos são planeados e também a forma como os medicamentos são prescritos aos pacientes, permitindo que este viés influencie a prática médica. A divulgação dessas conexões permite que o público, e outros cientistas e médicos, avaliem a pesquisa e avaliem possíveis conflitos. As penalidades por tais lapsos éticos não são severas.
Christine Hickey, uma porta-voz do Memorial Sloan Kettering, disse que Baselga informou adequadamente o hospital de seu trabalho na indústria. O centro, disse, "tem um programa rigoroso e abrangente para promover a honestidade e a objetividade na pesquisa científica". Num comunicado, Baselga assegurou que iria corrigir a informação sobre as suas ligações com a indústria em 17 artigos, incluindo o New England Journal of Medicine, o The Lancet e a publicação que ele edita, Cancer Discovery. Mas disse que não acreditava que a divulgação fosse necessária para dezenas de outros artigos.
Embora eu tenha sido inconsistente com as divulgações e reconheça esse fato, isso está muito longe de comprometer as minhas responsabilidades como médico
"Passei a minha carreira cuidando de pacientes com cancro e trazendo novas terapias para a clínica com o objetivo de prolongar e salvar vidas", disse no comunicado. "Embora eu tenha sido inconsistente com as divulgações e reconheça esse fato, isso está muito longe de comprometer as minhas responsabilidades como médico, como cientista e como líder clínico".
A relação de Baselga com a indústria é extensa. Além de fazer parte do conselho da Bristol-Myers Squibb, é diretor da Varian Medical Systems, que vende equipamentos de radiação e para quem a Memorial Sloan Kettering é um cliente. Ao todo, Baselga atuou nos conselhos de pelo menos seis empresas desde 2013.
De agosto de 2013 a 2017, Baselga recebeu quase 3,5 milhões de dólares de nove empresas, de acordo com a base de dados federal Open Payments, que compila as divulgações feitas por empresas de medicamentos.