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Ela aí está, a crise política, em todo o seu esplendor. Tantas vezes anunciada, agora concretizada. Diz-me a experiência que a forma como se gera e gere uma crise tem directa influência... na crise seguinte! Desta feita não será diferente e convém, para memória futura, registar alguns traços desta crise.

1.º registo - quando em Setembro de 2009 nenhum partido obteve sozinho a maioria absoluta, teceram-se loas às virtudes da negociação parlamentar e desvalorizou-se o risco da instabilidade governativa. Fui das poucas vozes contra esse entendimento e sempre afirmei que claudicava uma maioria estável no momento em que Portugal mais dela precisaria. Como se vê não adianta ocultar que o nosso sistema partidário perdeu ao longo dos anos capacidade de transacção e de concertação. E não se pense que tal perda se deve apenas a estilos pessoais.

2.º registo - pela segunda vez na nossa democracia, a esquerda parlamentar juntou os votos à direita para derrubar um governo minoritário do PS. Em 1977 Mário Soares respondeu com uma coligação com o CDS. Passados trinta e quatro anos de novo a esquerda parlamentar reedita o mesmo voto. Se, como tudo leva a crer, houver eleições, os resultados destas poderão mesmo esclarecer ainda melhor a função instrumental dessa esquerda parlamentar no nosso sistema político. Um voto de protesto, imprestável para soluções de governo num país inserido na União Europeia, coloca a questão da governabilidade à esquerda e sublinha o desequilíbrio do bipolarismo com manifesto favorecimento do bloco de direita.

3.º registo - de pouco adianta o líder do PSD fazer um comunicado (seja em que língua for) apelando a uma "maioria abrangente", tentando assim corresponder ao crescendo de vozes que preconizam um acordo que envolvesse todos os três partidos do arco da governabilidade (PS/PSD/CDS). Quem verdadeiramente entendesse que esse era o caminho não lhe abriria as portas desta forma, provocando a queda do Governo nas vésperas de uma decisiva cimeira europeia e cavalgando uma "coligação negativa" cujo único propósito era o de afastar o PS do governo da República. A não ser que a intenção fosse a de cortar cerce a possibilidade de um tal entendimento, com receio de que ele viesse a ser comandado... a partir de Belém!

4.º registo - a recusa do PSD em negociar com o Governo suscita as maiores dúvidas. Numa versão benigna pode-se dizer que, entusiasmados com a perspectiva do regresso ao poder, não quiseram "mostrar o jogo" antes de tempo. Mas, a crer na ambiguidade com que se referiram à questão dos "sacrifícios" mais justos impostos aos portugueses, receio bem que do que se trata é de criar a ilusão de que o ajustamento das contas públicas no prazo de dois anos se vá fazer sem que sejam pedidos novos "sacrifícios". Para começo de conversa de campanha eleitoral percebe-se, só que o estado do País não se compagina com a criação de ilusões que depois geram grandes decepções. Mais do que uma campanha de recriminações e culpabilizações mútuas, exige-se uma campanha de clareza nas opções. Infelizmente não me parece que a forma como a crise foi desencadeada pelo PSD aponte nesse sentido. Começa-se assim a perceber já os contornos da crise seguinte...

5.º registo - só nas próximas semanas perceberemos em toda a sua extensão o impacto desta crise política nas condições de financiamento da nossa economia. Como coincidem todos os analistas, eles serão pesados. Talvez convenha ter em atenção que a nossa tradicional propensão para a escolha de "bodes expiatórios" não impressiona nem as instituições europeias nem os mercados financeiros. E que, no final do caminho, ninguém se poderá eximir a comparar o quadro do PEC IV do PS com o "PEC de tipo novo" que será adoptado lá para o Verão, ganhe quem ganhar as prováveis eleições legislativas. É que a continuidade do Estado (e a permanência dos contribuintes) prevalece sobre a sucessão dos governos.

6.º registo - o Presidente da República queixou-se que a rapidez com que a crise se desenvolveu lhe retirou margem de manobra. Registe-se, para efeitos de crises futuras, que em Belém se preferem crises lentas.

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