Piano
Esta noite toco para ti. Sento-me ao piano, o banco que sempre achei demasiado baixo a servir-me de base. Sento-me e abro a tampa deste piano, fabricado em 1927. Limpo com um pano de veludo castanho o pó das teclas e a primeira nota sai, por acidente. O som propaga-se pela sala quase vazia, o eco a invadir o espaço, coisa nenhuma além de nós entre estas quatro paredes. Ao fundo, o rio cinzento sob a luz do fim de tarde e eu toco para ti.
Os meus dedos são oráculos que te falam de nós. Tu ouves? Sentes a vibração no chão de soalho antigo, nas paredes de 1890? Eu toco sempre para ti. Não tirei as tuas fotografias da mesa, no canto a sul. Estás ali, parado, presente, seco num momento que dura há décadas. Estás aqui e ouves-me tocar.
Gostavas de ouvir-me tocar Chopin. Toco. Cada nota que sai é um sorriso para ti. Todas as notas, todas as palavras que nunca te disse. Ouves?
O meu tempo acabou. Morri velho e doente e quase desconhecedor do meu passado. Perdi quase tudo. Quando se perde a memória é como se nada existisse, como se nada se tivesse vivido. As coisas existem enquanto nos lembramos delas. Nada mais. E eu morri esquecido. Existo hoje apenas porque me lembras. Tocas para mim. Eu gostava quando te sentavas ao piano, ao final da tarde, e me perguntavas o que queria ouvir-te tocar. A resposta era a de sempre. Chopin. Já sabias, mas gostavas que eu soubesse que podia escolher, tocarias sempre o que te pedisse. Ficavas horas a tocar. Sempre até eu adormecer e alguém te lembrar que era tarde para jantar. Jantávamos, ainda assim. Depois eu ficava a ver-te ler, embalado ainda pelas notas que soltavas do piano que nos enchia a sala e as vidas nesses dias de Inverno em que aprendemos que é nesta simplicidade de dar momentos que se esconde a essência do amor.
lénia rufino