Negligência
Há muito que a Casa Pia é um pesadelo continuado. De refúgio público para tantas crianças carentes de quase tudo tornou-se campo de recrutamento pedófilo num estranho processo ainda mal explicado. O designado "processo Casa Pia" está em julgamento e talvez faça luz sobre uma parte desta história horrenda. Todos os indícios que ao longo dos últimos anos fomos ouvindo e lendo deixam muitas perplexidades sobre as teias de agressores e seus cúmplices, sobre quem se esconde por detrás de quem aparece, sobre o desdobramento de personalidades, sobre os contornos políticos que se colaram ao processo, sobre a tentação do ajuste de contas... Muitas perplexidades. Mas duas certezas: houve abusos continuados de crianças da Casa Pia; e a Casa Pia violou a confiança das crianças à sua guarda e a responsabilidade que a sociedade e o Estado nela depositaram.
Se os abusos e a negligência da Casa Pia eram uma convicção firme pelas informações conhecidas, o tribunal arbitral que o Governo nomeou há dois anos comprovou-os. Concluiu que o Estado tinha a responsabilidade da boa guarda das crianças que acolheu e obrigou-o a indemnizar as vítimas. Ou seja, o tribunal reconheceu que os responsáveis pela Casa Pia foram negligentes e permitiram a violentação de pelo menos umas dezenas de crianças. Quem são eles? Os provedores que geriam a Casa Pia e os responsáveis políticos que os tutelaram. Quem é que vai pagar as indemnizações às vítimas? O erário público, isto é, todos nós. Talvez se perceba agora melhor a estranha situação de a Casa Pia não estar a ser acusada no julgamento judicial, mas ter vestido a pele de acusadora...
A ligeira, desleixada e negligente audição parlamentar de ex-provedores e ex-membros de Governo que tutelaram a Casa Pia nas últimas décadas serviu para alijar responsabilidades, mesmo quando se percebeu que dificilmente poderiam ignorar por inteiro alguns sinais de alarme que iam aflorando. As indemnizações a que o Estado é agora obrigado seguem no mesmo sentido. A culpa e a responsabilidade são do Estado, essa entidade abstracta que a todos vincula e a ninguém em particular. É como se a Casa Pia tivesse sempre estado em autogestão. O Governo do Estado lembrou-se de encontrar uma fórmula arbitral de responsabilizar o próprio Estado. O Governo do Estado não se lembrou de se responsabilizar a si próprio e de responsabilizar aqueles que escolheu para cuidar de crianças desprotegidas. A dissolução das responsabilidades continua a corroer a já diminuta credibilidade das instituições. Independentemente do justo julgamento de todos os pedófilos que violaram os seres mais frágeis da nossa sociedade, é imperioso que os responsáveis pela Casa Pia não continuem incólumes como se também fossem vítimas deste processo tenebroso.