Intoxicações

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1. Ache-se o que se achar da importância das cerimónias de comemoração dos 100 anos da implantação da República, a data merecia mais do que discursos mais ou menos mascarados sobre a actualidade política e a repetição do mais recente slogan político: a responsabilidade.

O Presidente da República e o primeiro-ministro, políticos profissionais experimentados, sabem que a mensagem para colar tem de ser repetida e, vai daí, não há aparição pública em que falhe o slogan. O que parece terem esquecido é que a insistência pode levar à banalização ou que se perca o sentido do conceito.

Podemos fingir que não vemos, podemos disfarçar e ler o discurso do Presidente da República como uma tentativa de fazer pedagogia sobre a responsabilidade colectiva, mas a realidade é que Cavaco Silva aproveitou o discurso do 5 de Outubro para pressionar Passos Coelho de forma a que ele viabilize o Orçamento.

O Presidente da República terá as suas razões. Provavelmente, ninguém melhor do que ele saberá a real situação das nossas contas públicas e se as medidas propostas pelo Governo são ou não inevitáveis.

O Presidente da República tem de estar acima das lutas partidárias, mas não pode ser alguém que paira sobre o País. Não pode ter uma actuação política feita de meias palavras e recados. Se pensa que a proposta orçamental do Governo é boa, diga-o de uma forma clara. Se pensa que não é boa, mas que face às circunstâncias o Orçamento deve ser viabilizado, informe-nos. Não estará, com certeza, a usurpar as funções da Assembleia da República, os deputados são livres de tomar a atitude que muito bem entenderem. Estará, isso sim, a exercer o dever de dizer o que realmente pensa aos que o elegeram como garante do regular funcionamento das instituições democráticas e como nosso representante máximo.

O que não pode fazer é, ao colar-se às posições do primeiro-ministro, contribuir para um clima em que se desresponsabiliza o Governo pela situação do país e se pretende lançar o ónus para cima dos partidos da oposição, nomeadamente, o PSD. E é isso que o Presidente tem feito, quer seja intencional ou não.

Como tenho a certeza que, de facto, Cavaco Silva pensa que o Governo é o principal responsável pela situação actual convinha que fosse claro para assim não contribuir para a campanha de intoxicação da opinião pública em curso.

É que não se deve apelar à responsabilidade dos outros e esquecer a nossa própria.

2. Tenho poucas dúvidas que, para o futuro político pessoal de Passos Coelho, o comportamento ideal seria seguir o conselho da dra. Ferreira Leite, ou seja, viabilizar o Orçamento sem se importar sequer em saber o que consta da proposta do Governo. Já toda a gente percebeu que o primeiro-ministro reza a todos os santinhos para que o PSD vote contra para poder fugir às suas responsabilidades e melhor coordenar a tal campanha de intoxicação em curso: a que defende que a culpa da actual e futura situação do País é de Passos Coelho.

Não deixa, porém, de ser interessante perceber que quem tanto fala de responsabilidade propõe um comportamento, no mínimo, irresponsável. É que, seguindo à risca os alvitres da ex-presidente dos sociais-democratas - vamos ser tolerantes e admitir que a dra. Ferreira Leite teve um mau momento quando escreveu no Expresso, em Agosto deste ano, que a melhor solução orçamental seria a dos duodécimos - Passos Coelho teria de se demitir do seu papel de líder do principal partido da oposição, e consequentemente de intérprete da vontade duma importante parte dos cidadãos portugueses, num dos momentos mais decisivos da nossa história recente: calava-se, fingia que nada se estava a passar e esperava calmamente que o PEC III nos conduzisse ao provável desastre.

Não se pretende fazer qualquer tipo de análise do que seria melhor, neste momento, para o País: se o Orçamento, apesar de mau, passar ou não. O que um presidente dum partido com as responsabilidades do PSD não pode deixar de fazer é assumir as suas responsabilidades enquanto líder, seja para viabilizar seja para votar contra, e explicar muito bem porque é que o faz.

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