Crónica
Hoje não tenho crónica. Acordei com um zumbido no ouvido, toda a casa reduzida àquele zumbido, e quando me sentei ao computador não me saiu uma frase com sujeito, verbo e complemento.
A carrinha do pão apitou ao fundo. O Chico pôs-se a cortar a relva, acentuando o zumbido. O carteiro puxou o sino do portão, mas não era a rapariga bonita nem o benfiquista simpático: era aquele gordinho tímido, e eu continuei sem crónica.
Já percorri os ficheiros de ideias e os separadores de e-mail. Já andei pelos jornais, à procura de inconsistências. Já fui ao Facebook e telefonei a amigos.
É como se todo o mundo se tivesse suspendido sem uma crónica.
Há bocado o vizinho Rebelo saiu na carrinha, com as suas botas de cano e as suas bilhas, a caminho dos pastos - não me ocorreu nada. Olhei para a venda da Telma, nos últimos preparativos. Passou o Galão, com um braçado de milho.
Nenhuma crónica.
Fui ao Almanaque do Camponez - nem sementeiras, nem colheitas, nem cosmologias. Sentei-me no jardim, a fumar - nada. Voltei para casa, à procura dos cães, mas até os cães dormiam.
Talvez pudesse ir ao Roberto, a ver dos velhos. Só que o deadline é daqui a pouco, e eu ainda não tenho crónica.
Toda a gente já escreveu a crónica do dia em que não tem crónica. Os melhores cronistas escreveram a crónica do dia em que não tinham crónica. Foram sempre melhores do que qualquer das minhas crónicas. Até o Jabor, que nunca foi grande cronista, se pôs escrever a crónica do dia em que não tinha crónica e saiu-lhe o "Amor e Sexo", que deu canção da Rita Lee e tudo.
Cidade é sexo, campo é poesia - poderia ser assim?
Deixa.
Hoje não tenho crónica. Fico apenas aqui, nesta janela, a olhar o vizinho Rebelo, que volta com as suas botas de cano e as suas bilhas já cheias de leite, e a pensar na inutilidade do meu trabalho.