Ao longo de anos, o baterista americano, amador da música, Ralph Leighton sentou-se frente a um colega de banda e gravou demoradas conversas. O produto de tal empresa originou o livro de 1985, Está a Brincar Sr. Feynman. As páginas desta obra traçam um roteiro no continente intelectual do homem que recebeu o Prémio Nobel da Física em 1965..A vida de Richard Feynman [1918-1988] combina acontecimentos improváveis: Participou no Pojeto Manhattan, conducente à bomba atómica, arrombou os mais “seguros” cofres de Los Alamos, estudou a velocidade de rotação do prato, investigou o desastre do vaivém espacial Challenger da NASA, foi considerado intelectualmente débil por um psiquiatra das Forças Armadas americanas..Feynman teve também o dom de mudar muitas vidas. Uma delas, a milhares de quilómetros de distância e num outro tempo. Em Portugal, um jovem aspirante a físico leu Está a Brincar Sr. Feynman. O jovem, agora professor catedrático e professor distinto do Instituto Superior Técnico, refere a propósito do livro do norte-americano: “O meu respeito pela ciência subiu ainda mais quando li este livro. Ali aprendi que podemos, e devemos, explorar os limites da nossa mente, da nossa capacidade, mas que nunca nos devemos levar demasiado a sério. E creio que me diverti sabendo que podemos ser os protagonistas do nosso próprio filme, uma estrela de rock no nosso concerto”..Vítor Cardoso, físico, é autor do livro O Eclipse do Tempo (edição Oficina do Livro)..No prólogo que escreve no livro, o físico teórico Emanuele Berti baliza-lhe os objetivos: “É acerca de grandes questões. O que é o tempo? O que é a luz? Como mudou, a mecânica quântica, a nossa visão do mundo? O que são os buracos negros e ondas gravitacionais?” As perguntas alongam-se, o texto de Vítor Cardoso viaja até aos buracos negros, ao princípio e ao fim do Universo e a conceitos como a queda da luz (já lá iremos)..O livro “nasceu da vontade de partilhar”, como confidencia o autor na introdução à obra, para acrescentar: “Gostaria de partilhar a imagem que tenho da ciência e de como cada uma das conquistas que fizemos ao longo de centenas de anos se encaixa no edifício científico.”.O objeto que Vítor Cardoso abarca é vastíssimo. Trará ao autor angústia? Numa entrevista anterior, o físico confidenciara que o “move o desejo de sair da angústia”. Dá-nos mote para perguntar: A vida de um físico faz-se na angústia, especialmente quando a dedica a estudar buracos negros e ondas gravitacionais? Vítor Cardoso reitera na afirmação: “Move-me o desejo de sair da angústia da ignorância. A passagem das trevas para a luz é dos maiores prazeres que podemos experimentar, e é um prazer tão grande que queremos repetir o processo. Vamos atrás de outras grandes questões às quais ninguém sabe responder para, durante umas horas ou dias sermos os únicos seres no planeta a saber a resposta. Neste processo, uma angústia ficou por satisfazer: a de que os meus recursos intelectuais são finitos, o que me deixa numa luta constante contra a vozinha que sussurra ‘não és bom o suficiente, não consegues ir além disto’, e eu sussurro ‘ai consigo, consigo’ e aprofundo mais um pouco, leio mais um pouco, vivo mais um pouco. Nisto, desgasto-me, aprendo. A voz está sempre lá a incomodar-me, mas de cada vez que faço algo novo, ela cala-se.”.“Os buracos negros são o fim do mundo”.Serve o título da presente obra de mote para alargarmos o conceito de eclipse. Este remete-nos, em sentido lato, para obscurecimento, desaparecimento ou ausência, Associamo-lo a um evento astronómico que relaciona dois objetos celestes. O livro do também docente na Universidade de Copenhaga empurra-nos para outro tipo de eclipse. “A etimologia da palavra vem do latim eclipsis, -is, do grego ékleipsis, -eôs, abandono, destruição, ruína, eclipse..O livro é sobre a ruína do tempo em diferentes sentidos. Porque os séculos derrotaram ideias, e elevaram outras, e sobre essas ruínas construímos o que sabemos hoje. E aquilo que sabemos hoje, o nosso edifício científico será talvez as ruínas sobre as quais iremos construir o futuro. Mas a ciência constrói e destrói apenas depois e ao longo de um diálogo com a natureza e com a comunidade. Há algo de mágico neste processo, em que conseguimos ser mais do que nós próprios, ir para além dos nossos defeitos. A noção de tempo relativo é bem ilustrativa disto, fomos da noção de tempo absoluto de Newton, para uma noção relativa de Einstein. As ruínas têm um propósito, são o ponto de partida para algo melhor”, sintetiza Vítor Cardoso..Do subtítulo da obra também extraímos as palavras Guia para Entrar em Buracos Negros. “Nos buracos negros o tempo não existe, está sempre de mão dada com o espaço. O tempo eclipsa-se por trás do tecido espaciotemporal. É claro que faz sentido falar em tempo, também ao pé de buracos negros, mas aí é uma medida tão ‘arbitrária’ que perde o uso que lhe damos na Terra. O tempo eclipsa-se, podemos ver o tempo de outros a parar, objetos eternamente (ou quase) em queda.”.Vítor Cardoso dá-nos o mote para nos aproximarmos - cuidadosamente - dos buracos negros. Perguntamos: o que há de tão magnifico num buraco negro que o tornou durante décadas uma impossibilidade no Universo? Responde-nos o físico: “Os buracos negros são o fim do mundo, e do nosso conhecimento, literalmente. São um rasgo no Universo e, por isso, defendemos durante décadas que o Universo nunca poderia criar uma besta como esta, até percebermos que não havia saída - o Universo tinha de os produzir, pelo menos sabendo o que sabemos hoje. Mas ainda não sabemos descrever o interior de um buraco negro.”.Em teoria se mergulhássemos num buraco negro, “seria o fim, o nosso fim. Mas morreríamos vendo coisas que nunca mais ninguém viu”, exalta Vítor Cardoso, e acrescenta: “Um buraco negro é um vazio no espaço-tempo, torcido sobre si mesmo, de tal forma que criou um cisma entre o interior e o exterior: o interior não consegue comunicar com o exterior. O interior abriga a mãe que deu origem à distorção, mas abriga-a em condições que desconhecemos. O tempo para no cisma, se me atirar em direção a um buraco negro, nunca mais me hão de ver a envelhecer”, elucida o especialista em ondas gravitacionais para acrescentar: “O exterior é um vazio, mas distorcido, e, portanto, interessante. Por exemplo, existe uma região no exterior de um buraco negro onde a luz orbita, onde a luz cai continuamente. Isto é, se acender uma lanterna nesta região, alguma da luz vai atingir-me na parte de trás da cabeça.”.O livro traz-nos, precisamente, conceitos como o atrás abordado: A luz cai? “Sim. Enquanto lemos esta frase a luz caiu. Não o conseguimos perceber, o que é interessante, e nos mostra a quantidade potencial de segredos invisíveis, apenas porque não somos bons o suficiente a ver ou a ouvir. A luz cai, devido à gravidade. Tudo cai. E a implicação, como mostro no livro, é que pode haver estrelas de onde a luz nem sequer consegue sair. E o nosso Universo é tão interessante que, se algo pode acontecer irá, sem dúvida, acontecer”..Matemática, a língua da natureza.Todo o livro de Vítor Cardoso está imbuído de alternância. O próprio explica-o na introdução que escreve à obra: “Por vezes faço ligações que gostaria de ver em tudo o que me rodeia (...) Outras vezes descrevo o que se passa como gostaria que me fosse explicado numa conversa de café (...). Alguém uma vez escreveu que por cada equação se perde uma percentagem dos leitores.”.O membro fundador da Sociedade Portuguesa de Relatividade e Gravitação não as arreda, às equações, do seu livro. Fá-lo em respeito às explicações que nos traz. A matemática não foge à escrita fluente do autor: “Este canal ou linguagem [a matemática] é a única através da qual conseguimos descrever o mundo, apreender a realidade, de uma forma sistemática, elegante, poderosa. Não ‘falar’ matemática impede-nos de ler o Dom Quixote ou os Cem Anos de Solidão da natureza, ou impede-nos de ver o Guernica do Cosmos. Já nem falo de ter uma vida ativa totalmente funcional. Falo de coisas muito mais profundas, falo da capacidade de encantamento”, detalha Vítor Cardoso e continua: “A capacidade de nos deliciarmos com o número pi ou de perceber padrões no mundo que nos rodeia, só pode ser plenamente apreciada sabendo falar matemática. A matemática não é difícil, é bela e é necessária. Vamos usá-la.”.Vítor Cardoso olha para uma equação matemática e detém-se em encanto. Di-la “povoada de segredos”. “Em Física, uma equação descreve a realidade, tal como a conhecemos. Tomemos a Lei de Newton, que é um exemplo paradigmático: a força entre dois corpos (“corpos” pode ser qualquer coisa, como duas pessoas, ou dois planetas) vale m1 m2/r^2, onde m1 e m2 são as massas de cada um e r a distância entre eles. Esta relação foi escrita por um ser humano, na tentativa de capturar matematicamente o que observamos no dia a dia ou através de experiências cuidadosas. Mas o Universo é tão fantástico que esta mesma relação é universal: descreve a atração gravitacional entre quaisquer corpos, em qualquer parte do Universo e em qualquer altura. Este é um segredo. O outro segredo que as nossas equações encerram é que são uma caixinha de surpresas para entender o mundo. Por exemplo, algum tempo depois de ser formulada, pensamos: se quaisquer corpos se atraem, com uma força tanto mais forte quanto menor for a distância, então a Lua atrai mais a parte da Terra que lhe está mais próxima. E com isso conseguimos descrever as marés: não só as duas marés diárias, mas a amplitude das marés.”.A data em que tudo se alterou.O livro de Vítor Cardoso dá-nos uma data muito precisa: 7 de outubro de 1900. Escreve que nesse dia “tudo se alterou”. “Esta data corresponde ao nascimento da Mecânica Quântica. Um dos saltos no nosso conhecimento, que implicou uma mudança de linguagem e de filosofia na forma como vemos e medimos o que nos rodeia. É uma data histórica, que aconteceu porque somos curiosos e queremos saber como as coisas funcionam. E foi ao fazer medições precisas que percebemos que a matemática que tínhamos até então não era boa o suficiente. Demos um salto quântico em 1900, enquanto espécie.”.“Somos curiosos.” A expressão dá-nos mote para a pergunta seguinte: Falta-nos presentemente curiosidade? Aquela que nos dá o impulso para um conhecimento científico e filosófico mais completo? “Não nos falta curiosidade, mas falta-nos mais estímulo para a satisfazer até ao fim. Acarinhemos mais quem quer saber, sem querer construir nada de útil, sem querer começar uma startup ou registar uma patente. Digamos sim a quem quer perder o jantar para estudar uma equação, porque há um detalhe interessante. Preocupa-me que sacrifiquemos a profundidade em prol da quantidade. Mas, acredito na espécie, ainda.”.O Eclipse do Tempo também trata do fim, ou melhor de vários fins (“o fim do interesse pela ciência”, “o fim do mundo”, “a teoria final”). Fins que nos são externos e aqueles que potencialmente podemos provocar. Diz o autor que “um fim causado pela nossa curiosidade não seria um mau fim”..Porquê? Responde-nos com humor: “Se temos de acabar, que acabemos porque quisemos saber mais. Não somos nada, mas caramba, tenhamos pelo menos a capacidade de nos pasmar e entusiasmar.”