Um em cada quatro portugueses sofrerá um AVC. Se não se tomarem medidas doença vai aumentar
Estima-se que 25 mil a 30 mil pessoas sofram um Acidente Vascular Cerebral todos os anos em Portugal, o que "é muito". Faltando unidades de tratamento e cuidados de reabilitação. Médicos e sobreviventes foram ao Parlamento dizer que o problema é sério e que os compromissos assumidos com a Europa estão a ser esquecidos.
Ana Paiva Nunes é médica internista e diretora da Unidade Cerebrovascular (UCV) do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC) - uma unidade que funciona no Hospital São José, em Lisboa, desde 2003 e que ao longo deste tempo já recebeu dois prémios internacionais do SITS (Safe Implementation of Treatments in Stroke), por ser referência na área - e é ela própria que diz, neste Dia Nacional do Doente com Acidente Vascular Cerebral, que se pudesse pedir um desejo a quem tem poder de decisão a nível político pediria que fossem criadas mais unidades AVC, para haver mais e melhor tratamento para os doentes e mais acesso à reabilitação.
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A médica, que é também vice-presidente da Associação Portugal AVC, que reúne sobreviventes à doença, diz mesmo: "Há muita coisa a falhar no tratamento a estas pessoas." Por isso, e aproveitando o dia que hoje se comemora, a associação foi esta semana à Assembleia da República dizer aos deputados que a doença em Portugal tem uma prevalência elevadíssima e que, se não forem tomadas medidas adequadas, vai aumentar ainda mais. "Há um problema sério e é preciso que o reconheçam, senão perspetiva-se um futuro muito mau", garante Ana Paiva Nunes.
"Com o envelhecimento da população, e se não for feito a nível da prevenção primária, para se evitar que a doença apareça, só se prevê que haja cada vez mais AVC". A internista relembra que "a prevalência da doença no nosso país é elevadíssima. Estima-se que um em cada quatro portugueses venha a sofrer um AVC, já imaginou o que é isto? Temos todos de trabalhar para resolver esta situação. É urgente que se criem mais unidades AVC, locais que funcionem com critérios muito bem definidos e que sejam também uma via de acesso à reabilitação adequada para os doentes".
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Por isso, neste Dia Nacional do Doente com AVC, data que se assinala também desde 2003 precisamente para sensibilizar a população e a sociedade para a realidade da doença, no sentido de se tentar promover a melhoria das práticas profissionais de saúde e incentivar a uma dinâmica que conduza a novas atitudes, Ana Paiva Nunes reforça: "Se pudesse pedir um desejo pedia mais unidades, melhores cuidados e mais reabilitação", porque quando um doente não é bem tratado os custos são elevados para o próprio e para a sociedade.
Existem 38 unidades AVC, mas deveriam existir mais
Ao todo, "existem no país, contando com as ilhas, 38 unidades AVC, muito menos do que serviços de Urgência em hospitais, e cada serviço destes deveria ter uma unidade destas", destaca a diretora da UCV do Lisboa Central, que em 2018 recebeu precisamente o primeiro prémio como "centro de topo mundial no recrutamento, qualidade de registo e seguimento aos três meses dos doentes submetidos a trombectomia e, desde 2020, também nos doentes submetidos a trombólise".
Ana Paiva Nunes assume que "é um motivo de orgulho", mas reconhece que tal também só é possível porque "todos os profissionais funcionam em equipa, desde internistas a neurologistas ou aos neurorradiologistas, dos enfermeiros aos técnicos de reabilitação". Aliás, reforça, o que "distingue a minha unidade é trabalharmos todos em conjunto, o que não acontece noutras, porque algumas são só de internistas e outras de neurologistas, quando um doente com AVC precisa destes dois conhecimentos. O doente com AVC precisa da partilha de cuidados e é isso que fazemos na UCV e que tanto nos orgulha".
A realidade não é esta em todo o país ou nem para todos os doentes com AVC. E é aqui que Portugal está a falhar. "No mundo ideal, todo o doente com AVC deveria ser internado e tratado numa unidade própria, porque são estas que podem dar cuidados diferenciados no tratamento da doença. Os profissionais, dos médicos aos enfermeiros e aos outros, são preparados e formados para cuidar das necessidades destes doentes, desde o momento que dão entrada com AVC até à altura em que são devolvidos à sociedade, já depois da reabilitação". Ou seja, a mais-valia destas unidades é facto de envolverem "uma panóplia de cuidados contínuos".
Se estas existissem, pelo menos em todos os serviços de urgência, se os cuidados funcionassem em rede, de forma organizada e monitorizada, "seria possível evitar mais mortes e mais incapacidade", afirma a médica, argumentando: "As pessoas têm a ideia de que o AVC atinge só idosos, mas não. O AVC pode ocorrer em qualquer idade e se um doente de 30 ou 40 anos com AVC não for bem tratado deixa de ser um elemento ativo da sociedade para passar a ser um elemento que só consome recursos. Ora, seguramente, que isto fica muito mais caro do que se este doente fosse tratado convenientemente e reabilitado ao ponto de poder voltar a exercer a sua atividade profissional."
Não há um registo nacional do doente com AVC
A médica reforça ser urgente: a criação de "um plano para a doença e uma rede de cuidados para melhor se tratar estes doentes. Andamos há anos a dizer isto, mas ainda não se conseguiu avançar neste objetivo e foi isto que também fomos dizer aos deputados".
Ana Paiva Nunes destaca que um dos aspetos fundamentais do Plano Europeu para o AVC, que Portugal assinou, está por cumprir. "Não se deu nenhum passo para cumprir este plano, que indica como prioridade fazer com que 90% dos doentes com AVC agudo sejam internados em unidades próprias".
Neste momento, em Portugal, "estima-se que cerca de 50% dos doentes sejam internados nestas unidades, mas esta é uma estimativa absolutamente pouco fidedigna, porque não há números concretos".

Ana Paiva Nunes diz que o distingue a sua unidade de outras é o facto de "trabalharmos todos em conjunto".
© Reinaldo Rodrigues Global Imagens
Aliás, salienta a médica, esta "é uma das principais falhas no nosso país" em relação ao tratamento e acompanhamento dos doentes. "Não há um registo nacional do doente com AVC", refere a médica. Isto mesmo também foi dito aos deputados eleitos pelos cidadãos ao Parlamento para que tenham esta falha em atenção".
Segundo contou Ana Paiva Nunes, o presidente da Associação AVC, António Conceição, traçou o retrato da realidade no país de uma forma geral, mas destacando os vários problemas e referindo a ausência de um registo nacional como "o primeiro de todos os problema", porque faz com que "os nosso dados não sejam reais, são apenas estimativas".
Ana Paiva Nunes diz mesmo que, atualmente, em Portugal "não temos capacidade para saber concretamente quantas pessoas sofrem AVC por ano ou quantos doentes chegam pela Via AVC, os quais são doentes emergentes, quantos são internados em unidades próprias ou quantos fazem procedimentos de trombólise ou de trombectomia, que são os tratamentos usados".
Se alguns números existem é porque as unidades de saúde os registam e partilham entre si, mas não são números estatisticamente comprovados". Se existisse "um registo nacional seria possível melhorar o tratamento, o acompanhamento e a monitorização da realidade, podendo assim avançar-se para cuidados com melhor qualidade".
E exemplifica: "Na minha unidade registamos todas a variáveis relevantes para todos os doentes. Dá muito trabalho, mas permite-nos monitorizar os tempos para sabermos sempre o tempo que o doente leva desde que chega ao hospital até que é tratado. Se estes tempos aumentarem é porque temos de rever os procedimentos. É preciso ver o que está a falhar e corrigir. Se não tivermos estes registos não sabemos como estamos a trabalhar."
Acesso à reabilitação é cada vez mais difícil
O segundo problema é o acesso à reabilitação. "É aqui que o país mais falha. E, curiosamente, é o tratamento mais barato", assume a diretora da UCV do Lisboa Central, alertando para o facto de que, neste momento, não há sequer garantia de que todo os doentes internados em unidades AVC tem melhor acesso à reabilitação. "Um doente de uma unidade destas tem mais probabilidade de ter acesso, mas não é uma garantia por si só", assume.
Porquê? "Porque o funcionamento destas unidades também não é monitorizado e não se sabe a qualidade com que estão a ser prestados os cuidados aos doentes". Embora, a verdade é que a maioria dos doentes "não chega a estas unidades acabam por ficar dispersos pelas enfermarias e é aí que são tratados, sendo difícil depois seguir o seu percurso e se fazem reabilitação ou não".
Mas o acesso à reabilitação também não é fácil devido à falta de profissionais na área, "São poucos, mal pagos e estão longe dos hospitais", explica a médica. A reabilitação é feita maioritariamente em unidades dos setores social e privado e "não sabemos como é que estas funcionam, porque os cuidados não são monitorizados. E não deveríamos funcionar assim".
Por isso, é que a médica defende um plano e uma rede de cuidados organizados e monitorizados para o doente com AVC. Admite que seja "preciso investimento em recursos humanos e técnicos, mas se houvesse, pelo menos, uma organização de cuidados a nível nacional, os profissionais sentiriam isso como uma motivação e penso que se trabalharia melhor. Os profissionais gostam de trabalhar de forma eficaz e organizada e não no meio da confusão. Se calhar, até se conseguiria fazer mais e melhor sem muito mais dinheiro".
Nesta data, a médica faz questão de sustentar que a doença em Portugal, além de ser muito prevalente, tem também uma mortalidade elevada, e que é urgente avançar-se para um caminho em que a criação de um registo nacional e a monitorização dos cuidados sejam objetivos a concretizar.
"Sou uma otimista", diz. Só assim se conseguirá mudar atitudes e atuar na prevenção primária, porque se o cenário é desanimador é porque a população também não tem muita literacia sobre a doença e não aposta em hábitos saudáveis, como exercício ou alimentação adequada para evitar à partida doenças crónicas que podem levar ao AVC, nomeadamente hipertensão, diabetes ou colesterol elevado.
Os sintomas de um AVC são variadíssimos, porque o cérebro é responsável por tudo, mas "temos de nos focar nos que são conhecidos como os 3F (Fala, Face e Força) para não deixar escapar nenhuma situação urgente e o seu tratamento. Se uma pessoa tiver alguns destes sintomas, dificuldade em falar, a boca ao lado ou falta de força num braço, ou se tiver os três em conjunto tem logo de ser dado o alerta ao 112, porque pode estar a fazer um AVC. Se for logo tratada, isso pode modificar completamente o seu prognóstico".
A doença não vai acabar em Portugal, mas o seu impacto poderá ser atenuado se se tomarem as medidas corretas. Como diz Ana Paiva Nunes, "temos de trabalhar todos em conjunto".
UCV faz cerca de 600 tratamentos
A Unidade Cerebrovascular do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central fez em 2022 cerca de 200 procedimentos de trombólises (injeção do medicamento que dissolve coágulos), no caso de um AVC isquémico, e cerca de 450 trombectomia, que é um cateterismo ou uma angiografia.
Segundo a diretora da unidade, em Portugal, só poucos centros fazem este último procedimento, porque exige profissionais altamente diferenciados. Ao todo, num só ano a UCV recebeu mais de 900 doentes e, destes, pelo menos, 650 necessitaram destes tratamentos, mas desde 2016 que os registos da unidade mostram que o número de trombólises está a diminuir, enquanto o de trombectomia está aumentar, passando de cerca de 250, naquele ano, para 450 no ano passado.
Quanto a resultados, a médica diz que, ao fim de três meses, 39% dos doentes não têm incapacidade significativa, 13% têm incapacidade moderada, 23% incapacidade grave, 25% óbitos.