Sociedade
26 maio 2023 às 22h09

Um campeão que gostava de ter sido arquiteto e descobriu a sua vocação como pai

Brunch com Carlos "Nico" Nicolía, jogador de hóquei em patins do Benfica.

Quando nos encontramos no café 6 IX, com vista para o Estádio da Luz, as olheiras de "Nico" denunciam a falta de horas de sono. Na véspera, foi ver o Benfica jogar a Alvalade e teve de seguir a marcha lenta da Segunda Circular, reservada a adeptos do clube visitante em jogos considerados de alto risco. Como este, em que o clube em que um dos capitães da equipa de hóquei podia ter conquistado o 38.º título de futebol.

Pedimos café e Carlos Nicolía começa a viagem pelas suas memórias, contando que jogava em Itália quando foi descoberto por um olheiro do Benfica, durante um jogo da "Champions", em 2014. "Eu já levava dez anos lá no Valdagno e sabia que para ganhar alguma coisa importante precisava de um clube grande, por isso nem hesitei." Agora em vésperas de cumprir uma década a vestir a camisola vermelha (marca que atingirá em agosto), o jogador da equipa de hóquei da Luz - em época de grandes decisões - recorda que foi muito mais fácil adaptar-se a Lisboa do que quando trocou a Argentina por Itália. "Aqui tudo era bom: o clima, as gentes, o clube. Eu cheguei num momento muito particular da minha vida pessoal, vinha só com o meu filho Cris, de 3 anos, e o Benfica foi uma família... Mas verdadeiramente, uma família", sublinha.

"Nico", como é carinhosamente tratado por colegas e amigos, tinha acabado de ficar viúvo e levava já no currículo quase dois anos a equilibrar a vida de um hoquista profissional com as necessidades de um bebé - "a minha mulher ficou gravemente doente e teve de ser internada; era uma lutadora, mas acabou por não conseguir vencer a doença", conta, a levar mais tempo a escolher as palavras de uma língua que não é sua mas faz por falar, conforme a emoção lhe faz doer a memória. Depois vai buscar a recordação mais alegre: o filho a acordar, recém-chegado a Lisboa, e a constatar que estava sol. "Quando o ia pôr ao infantário em Itália estava sempre cinzento, chuvoso, e ele ficou tão contente", recorda.

"Apesar de ser um clube gigante, uma estrutura enorme - uma pessoa entra no Estádio da Luz e tem uma sensação incrível, é esmagador -, ao mesmo tempo é muito familiar e foi uma surpresa." Essa amizade e a sensação do clube como casa torna-se óbvia de cada vez que ao café chega um colega de equipa e amigo, trocam abraços e impressões sobre os nervos do Sporting-Benfica da véspera, em futebol. Carlos segue tudo o que é da vida do clube da Luz e essa pertença fortaleceu-se ainda mais com os filhos, agora dois - Cristiano, de 15 anos, e Roman, de 7, ambos benfiquistas ferrenhos e já desportistas no clube. Ele próprio diz que é do Boca, mas é o Benfica que lhe faz saltar o coração do peito. "Fiquei ainda mais adepto pelos meus filhos, mas já o Panchito Velázquez (considerado dos melhores jogadores de sempre, também argentino e benfiquista) me dizia que era assim, é muita emoção. Eu só entendi quando cheguei - a primeira vez que vi o Otamendi foi incrível", diz o avanlado que no Benfica soma dois títulos de campeão nacional, duas Taças de Portugal, uma Liga Europeia e uma Taça Intercontinental.

A mulher, Flávia, é argentina como ele, cresceram juntos e reencontraram-se já ele jogava em Lisboa. Os pais continuam a viver por lá, mas os filhos são portugueses e o que gostam das suas origens resume-se às férias que lhes proporcionam em San Juan. E se é aqui que os filhos se sentem em casa, a "Nico", pai-galinha que é, também não passa pela cabeça sair.

Carlos Nicolía vem de San Juan, uma província argentina que se cola ao Chile e é uma espécie de capital do hóquei. "É uma cidade pequena, tem uns 300 mil habitantes e praticamente toda a gente joga, nem se liga muito ao futebol, mas para onde quer que se olhe há um pavilhão de hóquei", descreve. Para quem nasceu de pai médico e mãe socióloga, com três irmãos licenciados - um advogado, uma médica e uma psicóloga -, a notícia de que queria fazer do hóquei vida não foi a coisa mais fácil de engolir pela família.

Seguindo os amigos, como é próprio da idade, "Nico" meteu-se no pavilhão e começou a patinar ainda nem sabia ler e ficou obcecado. "Eu ia à escola, jogava futebol e basquete com outros miúdos e tudo, mas estava sempre a pensar no hóquei e a pedir à minha mãe para me deixar ir jogar. Patinava a toda a hora e ia ver os jogos todos que podia, fossem da minha equipa ou não." A sua equipa era o Olimpia e conforme foi crescendo, começou a dar nas vistas, a ser chamado a jogos importantes, competições maiores. Aos 14, um treinador chamou a mãe à realidade.

"Disse-lhe: "Se o Nico quiser, ele pode chegar à Europa." E eu assim que ouvi aquilo soube que era o que queria." Não tardou a que um clube da Coruña o visse e chamasse a Espanha, mas os pais impuseram como condição que acabasse os estudos na Argentina. Mesmo que não ouvisse os apelos do pai para que se licenciasse - "Talvez tivesse sido arquiteto, hoje penso que tinha gostado imenso" -, sem o liceu completo, não iria a lado nenhum. Fê-lo, ainda que tivesse de usar toda a sua persistência para convencer a professora de Química que merecia passar. E aos 17 anos, com o 12.º completo, estava a embarcar para Espanha a solo - afinal, para Girona, onde ficaria um ano, antes de se mudar para o italiano Valdagno, descobrindo então que nem tudo eram borboletas. "Não era como jogar com amigos, havia muita competição, havia lesões, havia amigos que ficavam chateados por não terem sido convocados..."

Carlos admite que sempre valorizou menos o dinheiro que podia receber do que o que um clube podia dar-lhe em crescimento, que podia melhorá-lo como pessoa. "Se eu estou bem, eu vou ser melhor, treinar melhor" diz, comparando essa felicidade e responsabilidade a ter um filho. "É uma coisa muito boa, uma alegria incrível, mas também uma enorme responsabilidade."

Diz que ele próprio mudou, enquanto profissional, quando o filho nasceu: "Eu era muito sanguinário, estava em cima do árbitro, arranjava confusão, mas depois já não era só eu que importava." E então veio o momento mais difícil da sua vida, que também vê como transformador: "Eu de repente tive de ser pai e mãe, viver com duas emoções extremas, a alegria de ele começar a falar, a andar; e do outro lado a Celina doente, internada... Foi um crescimento de um dia para o outro, eu tinha de acordar a meio da noite, dormia como podia, comia o que dava, fazia os horários do Cris. Nunca mais tive rotinas desportivas. O que o meu filho precisava, eu fazia. E esse que foi o meu pior ano pessoal foi o melhor da carreira." Até chegar ao Benfica, com a missão de elevar o hóquei ao nível do futebol.

E é aqui que continua a querer ficar e jogar, mesmo que admita que terá de sair num par de anos. "Eu sempre disse que aos 38 deixaria - são muitos anos, eu comecei aos 4... -, mas o Benfica tem tudo para prolongarmos a carreira. Agora acho que não quero jogar para lá dos 40 anos", diz - sem grande convicção, acrescento eu, que lhe interpreto a paixão do jogo e do clube da Luz em cada palavra.

"Nos últimos anos, tive colegas de 20, 21 anos, e eu vejo-me neles e digo-lhes sempre o mesmo: vem, treina, joga e esforça-te por seres sempre melhor. Mas estuda, não deixes de estudar, porque uma carreira no desporto não dura para sempre e um dia vais acordar velho para o desporto mas novo na vida e vais querer fazer mais. Não é uma questão de ter dinheiro ou não, é sentir-se útil."

Diz que aos clubes também cabe a responsabilidade de abrir os olhos aos seus jogadores, em levá-los a estudar, por muito bons desportistas que sejam. "Mesmo na vida, muitas vezes querem que eles só vejam aquilo, o futebol ou o que for, não há escola, não há namoradas, não há amigos... e isso é duro, porque estamos a falar de miúdos. E por isso às vezes eles até ficam saturados e desistem ou fazem asneiras. Tu vês que o teu irmão está apaixonado, os amigos vão para a universidade e vão sair, vão de férias ou a festas, e tu estás sozinha ou rodeada de velhos. Ser desportista é muitas vezes ter de trabalhar para ter um físico de 18 anos, pensar como alguém de 40 e viver como um velho de 80."

Essa experiência que sentiu na pele e a frase do pai ao vê-lo embarcar para a Europa como hoquista profissional - "Não vais fazer mais nada?..." - ecoam hoje nos conselhos que distribui aos mais novos. E também "Nico", aos 37 anos, os segue. Há cinco anos, começou a explorar possibilidades e se era tarde para tentar Arquitetura, não se afastou muito da área. "Criei uma empresa em Itália com um sócio brasileiro, que é meu amigo, de soalhos - mas foi uma parede difícil de saltar, porque toda a gente a quem eu falava na empresa torcia o nariz, porque só me viam como hoquista... Comecei a ir ao ginásio, a encontrar desportos que possa fazer até mais tarde. E estou a estudar inglês - algo que a minha mãe sempre quis que eu fizesse - e a ver se me inscrevo num curso da Federação Portuguesa de Futebol, porque quero experimentar outras coisas. E agora em setembro, talvez faça um curso de Gestão Desportiva, já estou a ler tudo o que apanho sobre o assunto", revela. Aos 60 anos, não quer que o vejam ainda só como jogador de hóquei - "ambientes pequenos não criam em mentes abertas", diz.

E se os filhos quiserem seguir uma carreira desportiva, como ele? "Às vezes dizem-me que querem ser futebolistas, que vão ser o próximo Guedes ou Félix. E eu só lhes digo que têm é de estudar!" Ri-se, consciente da ironia de personificar hoje as preocupações do seu próprio pai há mais de 20 anos. Sobretudo, quer dar-lhes as ferramentas e a educação para que sejam bem formados e independentes. "Eu não era assim...", diz de novo, a escutar o pai dele nas próprias palavras.