TVI acusada de "monetizar violência" ao manter Bruno de Carvalho no Big Brother
"Estamos perante um crime de natureza pública. A TVI tem o dever de agir face a uma situação de violência. Ao não agir - que também é uma ação - está a pactuar. Sabe que está a ser cometido um crime, está na sua mão impedi-lo e nada faz, pactuando com a manutenção da situação só para benefício do canal, porque traz audiências."
Elisabete Brasil, investigadora e ativista pela igualdade de género, coordenadora da estrutura de atendimento a vítimas de violência doméstica da FEM (Feministas em Movimento) não poupa indignação perante a posição da TVI, que descreve como "quase co-autoria".
Refere-se ao facto de a estação ter mantido no programa Big Brother, até ao final da noite deste domingo, quando teve lugar a "gala" em que acabaria por ser "expulso pela votação do público", o ex-presidente do Sporting Bruno de Carvalho. Em causa o seu comportamento com outra concorrente, Liliana Almeida, que levou a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) a apresentar, na tarde de domingo, uma queixa ao Ministério Público por violência doméstica.
"Apresentámos queixa no Ministério Público, tendo por base os factos que são do conhecimento público, mais precisamente o que se passou na emissão do programa Big Brother na sexta-feira", explicou ao DN a presidente da CIG, Sandra Ribeiro. "Mas fomos visionar para trás, para programas anteriores, e percebemos que há ali um clima de ameaça permanente."
Na emissão de sexta-feira do programa, Bruno de Carvalho agarrou com violência o pescoço de Liliana, obrigando-a a baixar a cabeça, enquanto dizia: "Não me faças de parvo. Gosto de ti. Fazes-me sentir mal."
Um comportamento que a CIG considera "ameaçador" e "suscetível de configurar a prática do crime público de violência doméstica, na forma psicológica e física."
A situação foi denunciada como crime por inúmeras pessoas nas redes sociais. Terão sido essas denúncias, acompanhadas de excertos do programa, que chamaram a atenção da CIG.
A comissão também contactou a TVI instando o canal a agir de imediato, expulsando Bruno de Carvalho, adiantou Sandra Ribeiro ao DN. "Eu própria liguei para as relações públicas da estação avisando do facto de termos enviado um email a pedir para tomarem medidas imediatas para fazer cessar a situação. Até agora não obtivemos resposta."
Na comunicação escrita enviada à direção da estação, a CIG dizia esperar que esta tomasse de imediato "as diligências necessárias para parar imediatamente com esta situação" e "condenasse publicamente o comportamento do referido concorrente, contribuindo assim para a causa da prevenção e combate da violência doméstica e não permitindo a sua banalização."
Para a responsável por este organismo de defesa da igualdade entre mulheres e homens, o ideal era que "a TVI cessasse imediatamente a participação de Bruno de Carvalho, ao invés de, como parece ser o caso, esperarem pela 'gala'. Gala é tudo o que esta situação não merece. Repudiamos em absoluto esta forma de atuação, em que parecem estar a monetizar a violência."
Mas a TVI não só não fez cessar "de imediato" a presença de Bruno de Carvalho no programa como transformou a acusação de violência doméstica, que tinha estado nas tendências do Twitter e outras redes sociais todo o fim de semana, em tema principal do programa, confrontando o acusado e a sua alegada vítima com a mesma.
"Tento ser imparcial e não julgar qualquer tipo de comportamento de uma pessoa, neste caso jogador, dentro da situação em que está exposto." Foi com estas palavras que Cristina Ferreira, diretora de programas da TVI e apresentadora da gala da noite de domingo, introduziu o assunto. De seguida "entrevistou" em separado Bruno de Carvalho - que se disse injustiçado e "vítima de invejas" e se queixou de, por causa da acusação de que é alvo, não ter recebido um telefonema das filhas a dar-lhe os parabéns -, e Liliana Almeida, a quem perguntou "se alguma vez sentiu medo". E a seguir falou com os dois em conjunto, para concluir: "Só o amor poderá resolver as situações, mesmo aquelas mais condenáveis."
Elisabete Brasil diz-se estupefacta. "O que sabemos é que a maior parte das vítimas na situação de vitimação não são capazes de reagir e até de conseguir ver o que lhes está a acontecer. A normalidade e aquilo que não é normal confunde-se. Muitas vezes a pessoa percebe que alguma coisa não está bem mas não consegue identificar o quê. Quem está fora daquele relacionamento é que tem obrigação de intervir e evitar a situação. Não o fazer é pelo menos um comportamento negligente."
Para uma jurista consultada pelo DN, a estação e a produtora - a Endemol - não incorreram para já em responsabilidade criminal, mas pode haver lugar a responsabilidade civil.
Há, opina esta penalista, que prefere não ser identificada, "obrigações contratuais - por exemplo, se alguém ficar doente têm de levar a pessoa ao médico -, e, sendo possível que este tipo de situações como a que está a ocorrer não esteja prevista, existe a boa fé como princípio geral do direito, como regra geral de interpretação dos deveres contratuais, o que exige que o cumprimento do contrato seja feito de acordo com a melhor proteção dos direitos dos contraentes. E na minha interpretação a estação está a falhar, logo, pode ser responsável por danos morais e patrimoniais." E lembra que por exemplo no que respeita ao assédio as entidades empregadoras são obrigadas a preveni-lo, "senão são civilmente responsáveis."
A representante da FEM suspira. "Há coisas em que parece que estamos a regredir. Quando o Big Brother apareceu, há mais de vinte anos, a violência - um pontapé de um concorrente a outra - implicou expulsão imediata, e mais recentemente lembro-me de suceder o mesmo com outra agressão. Será que agora é diferente porque aqueles eram anónimos e estes agora são 'famosos'?"
A situação é tanto mais incompreensível, comenta, quando era suposto "agora não se poder dizer ou fazer nada, por causa da alegada cultura de cancelamento".
Além da CIG, também a Associação Mulheres de Braga manifestou a intenção de apresentar queixa contra o ex-presidente do Sporting, dando disso conta no respetivo Facebook.
"É com tristeza que vemos a TVI a compactuar com a situação em prol das audiências", lê-se na publicação. "A Associação Mulheres de Braga não vai 'mandar a vítima para junto do agressor enquanto ganha coragem para fazer a queixa'. Vimos assim informar que faremos uma queixa-crime por violência doméstica. Um crime que é público sendo dever de todos participar. Pedimos a expulsão imediata de Bruno de Carvalho, retratação pública do agressor e da emissora. Repudiamos a atitude negligente e vergonhosa da TVI, bem como da sua direção, que perante o flagelo da violência doméstica nada disseram, nada fizeram. As bandeiras que outrora levantaram contra a violência doméstica servem para lutar não para esconderem a cara."
O programa Big Brother é patrocinado pelas marcas Intermarché, Vinted e, Fairy e pelo site de apostas Betano.
NOTA: Texto alterado às 13H46 para retirar a marca Wells, que fez saber ao DN que não é patrocinadora do programa Big Brother apesar de a emissão deste domingo à noite da "gala" ter incluído um spot da mesma. De acordo com um representante da marca, não foi uma escolha da Wells a inserção do spot naquele espaço.