Cinco anos depois do início da pandemia já é possível saber qual o impacto que esta teve nas doenças oncológicas?Concretamente, ainda não. O que lhe posso dizer é que se começa a perceber alguma coisa, mas o impacto real ainda está por avaliar, porque ainda não passou o número de anos necessários para fazer essa avaliação com maior expressão. Só quando tivermos os dados da incidência e da sobrevivência é que vamos poder fazer essa avaliação. Sabemos que houve um atraso em algumas áreas significativas do acesso ao tratamento durante a pandemia, mas isso também tem vindo a ser recuperado. Agora, o que aconteceu às pessoas que foram afetadas por tumores neste período ainda não conseguimos dizer. Esse balanço ainda está por fazer.Mas tem sido referido por quem está no terreno que tanto a incidência como a mortalidade aumentaram nos últimos anos. Esta percepção está correta ou não?O que nós sabemos, e se compararmos os dados do RON, de 2018 a 2021 (foi publicado muito recentemente os dados deste último), é que passámos de 57 878 mil novos casos por ano para 60 717. Provavelmente, isto acontece por o sistema também estar a conseguir identificar mais casos, mas, atenção, este aumento na incidência também é normal, porque os portugueses também vivem mais tempo. E se vivemos mais, mais possibilidades há de desenvolvermos tumores. O que é preciso saber é se as pessoas que não são tão idosas morrem mais da doença oncológica ou de outras causas. E esta determinação, desconhece-se.A passagem de 57 mil para 60 mil casos não é muito?Não, está em linha com a média europeia..Mais de 60 mil novos casos de cancro por ano. Mortes abaixo dos 70 anos são preocupação. Como diretor do Programa Nacional o que o preocupa mais relativamente à realidade portuguesa?O que me preocupa mais é a implementação no terreno da Estratégia Nacional de Luta contra o Cancro, definida em 2023. Esta contém medidas para a prevenção, nomeadamente para o diagnóstico precoce, para o tratamento e sobrevivência e para os cuidados paliativos. É uma estratégia transversal, quer para os cuidados em saúde quer para a investigação clínica, e precisa de ser posta no terreno.Isso não está a ser feito?Em 2024, tivemos vários encontros com a comissão executiva que a vai implementar e é preciso que tal seja feito em todas as suas fases, por exemplo na área da prevenção é preciso que se avance na luta contra o tabaco, quer seja através de campanhas ou de recomendações, o mesmo em relação ao álcool. Quanto mais depressa apostarmos em legislação contra os fatores que podem levar ao aparecimento do cancro, mas este é condicionado. Em termos de legislação, já houve atualizações das normas para a população de alto risco em relação ao cancro da mama, vai sair também uma norma para a população de alto risco para o cancro do colo do útero para que possamos atingir a meta europeia, que é convidar 90% da população elegível a fazer o rastreio..Dos açúcares das células tumorais está a nascer uma vacina contra o cancro no IPO do Porto. Vai mudar-se alguma coisa na metodologia dos rastreios?Em julho do ano passado, foi publicada nova metodologia para os rastreios oncológicos, que definiu uma norma que é a 'mãe de todas as normas' que vai no sentido de se criar uma plataforma robusta de infiormação, muito em linha com aquela que foi criada para a Covid-19 e para a vacinação, de forma a que a população elegível seja notificada para um rastreio, mesmo que não tenha médico de família. Tem de haver uma central coordenadora para chamar as pessoas. Mas posso dizer-lhe que temos um grupo de trabalho que vai publicar muito em breve, provavelmente ainda antes do fim do meu mandato, em abril, um guia de orientação para a implementação do projeto piloto para o cancro do pulmão.O que vai constar nesse guia?Como deve ser feito, onde o vamos fazer, que pessoas é que são elegíveis e o circuito que deve ser seguido para se encaminhar estas depois estas pessoas caso seja necessário. Antes de avançarmos para um programa à escala nacional, temos de testá-lo numa pequena região. Está a ser feito para o cancro do pulmão porque este integra o grupo dos três novos rastreios anunciados (pulmão, estômago e próstata). São rastreios que deveriam avançar já este ano, embora o do estômago e o da próstata estejam mais atrasados.Já deviam ter avançado em 2024...Tem de fazer tudo para que avancem, tem de haver também vontade política para que tal aconteça, até porque Portugal está na linha da frente no cancro do pulmão e do estômago, devido à alta incidência.Em termos de futuro e de cuidados aos doentes o que considera que é mais importante fazer?Há uma coisa sobre a qual temos de começar a falar, que é a criação de uma rede de centros de referenciação para a oncologia, para aumentar a qualidade e a equidade nos tratamentos dados aos doentes. O objetivo final é que todos os doentes sejam tratados com a mesma qualidade em qualquer unidade do país, mas para isso tem de haver certificação e funcionamento em rede. Por exemplo, um doente com cancro do pulmão tem de ter a certeza que a unidade do interior em que vai ser tratado é um centro idóneo e que tem a mesma qualidade de outro que está em cidades como Lisboa, Porto e Coimbra. Portanto, a forma como vamos prestar cuidados oncológicos em Portugal é um dos desafios do futuro. Não estou a dizer que os nossos cuidados não têm qualidade, não é nada disso. Têm. Mas temos de nos modernizar e adaptar para tratarmos melhor os doentes, e até gastando menos.Isso é possível?É. Fomentando o funcionamento em rede. Isto já se faz na oncologia pediátrica, só há quatro centros onde as crianças são tratadas. Mas para isto é preciso criar uma rede que ligue todos os centros de tratamento em oncologia. No fundo, devemos funcionar nesta área como se funcionou para a covid-19, em que houve doentes que iam de Lisboa para hospitais do centro ou do norte para serem tratados em cuidados intensivos. É isto que se tem de fazer na oncologia. Cada hospital tem as suas especificidades, mas depois deve-se funcionar em rede para que um doente de Bragança ou do Alentejo tenha as mesmas possibilidades de tratamento que um que vive no centro de Lisboa, do Porto ou de Coimbra.As pessoas não são tratadas de igual forma em qualquer unidade do país?Não. Temos de racionalizar mais o funcionamento. Dou-lhe um exemplo. É preciso ter a certeza que em qualquer parte do país o doente tem acesso à medicina de precisão, a consulta, cirurgia e até aconselhamento genético no tempo adequado. Quando digo funcionar em rede, no fundo é criar uma rede de referenciação para o tratamento oncológico. Mas para as pessoas serem tratadas com qualidade é preciso que se revejam também todos os códigos de patologia para definirmos os tempos adequados. Os tumores não são todos iguais, um cancro da próstata pode ter de ser operado num mês, outro pode esperar dois a três meses. Temos de priorizar de facto as patologias, se as colocarmos no mesmo saco porque são patologias oncológicas não estamos a dar as mesmas oportunidades aos doentes. Outro exemplo, 45 dias é o tempo adequado para uma cirurgia após o diagnóstico mas isso para um cancro gástrico pode ser mau, o doente pode ter que sofrer de imediato uma intervenção e isto tem de ser revisto.