Até esta semana, estavam inscritos na Ordem dos Médicos 1960 especialistas em Ginecologia-Obstetrícia e 2529 especialistas em Pediatria, mas, destes, apenas 748 obstetras e 1325 pediatras trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS), menos de metade no caso dos primeiros e pouco mais de metade nos segundos. A falta de recursos humanos nestas especialidades tem sido apontada como a principal causa para o encerramento sistemático de alguns Serviços de Urgência na Região de Lisboa e Vale do Tejo, mas o DN questionou todas as unidades que têm vindo a encerrar os seus serviços sobre o número de médicos que têm e os que deveriam ter para que esta situação não se repetisse semana após semana e foram poucos os que responderam. Apenas três reconhecem a falta de recursos..Álvaro Almeida. “São precisos 19 especialistas para assegurar uma urgência e hospitais têm entre oito a 11”.A Direção Executiva do SNS confirma a escassez de pessoal e diz estar a preparar medidas para resolver a situação na região, mas a Ordem e os sindicatos da classe médica dizem que a tendência é para o agravamento - em primeiro lugar porque muitos médicos estão a atingir o limite das 150 e 250 horas extraordinárias; depois devido ao período de férias que se aproxima, e, por fim, devido à tendência de saídas destes especialistas do SNS, que se mantém.Aliás, de acordo com a informação disponibilizada ao DN pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), em dois meses - de final de dezembro a fevereiro -, houve mais seis obstetras que deixaram o SNS. Os dirigentes sindicais dizem não estranhar, já que o processo que leva à decisão da saída “é uma pescadinha de rabo na boca, quantos mais saem mais trabalho recai sobre quem fica e muitos acabam por desistir”, refere ao DN a presidente da Federação Nacional dos Médicos, (Fnam), Joana Bordalo e Sá.Para o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Nuno Rodrigues, “a falta de médicos na Região de Lisboa e Vale do Tejo é uma situação grave e para a resolver o Estado vai ter de encontrar soluções muito criativas, em termos de incentivos”.Já para o bastonário, a questão não se coloca só ao nível da prestação de cuidados nas urgências, mas também da formação, que “é uma grande preocupação”. “Se não há médicos assistentes, menos vagas poderão ser lançadas para novos especialistas”, diz Carlos Cortes. Por exemplo, refere, “este ano, foram lançadas 59 vagas nacionais para Obstetrícia e 103 para Pediatria, o que é preciso é começar-se a trabalhar para que estes especialistas escolham ficar no SNS no fim da formação”..Sindicato de Médicos da Zona Sul pede explicações ao Garcia de Orta pela saída de obstetras.O coordenador do Plano de Reorganização das Urgências de Obstetrícia-Ginecologia e Pediatria, Alberto Caldas Afonso, tal como o DN noticiou ontem, faz um balanço positivo das medidas assumidas para esta área, nomeadamente a referenciação pela Linha SNS Grávida, em vigor desde 16 de dezembro, mas concorda que a Região de Lisboa e Vale do Tejo necessita de “uma intervenção particular e profunda”. E deixa um alerta: “É preciso fazer-se mais, e rapidamente, para não se perder mais médicos. O Ministério da Saúde recebeu uma proposta da nossa comissão para a remuneração das equipas na área da Obstetrícia e da Pediatria, para que seja possível fixar estes profissionais no SNS. Agora, cabe ao poder político a aceitar ou não.”Hospitais do Norte têm mais especialistas nestas áreasOs números da Ordem dos Médicos disponibilizados ao DN revelam que o total de 1960 especialistas em Ginecologia-Obstetrícia, está espalhado da seguinte forma pelo país: 654 no Norte, 352 no Centro e 954 no Sul e ilhas. Mas se olharmos para os números da ACSS, verifica-se que, deste total, só 748 trabalham no SNS, sendo que no final de dezembro de 2024 eram 754, e que o maior número de especialistas está concentrado nos hospitais públicos da Região Norte, 331, menos três do que no final de 2024. No Centro estão 156 (mais um do que em dezembro último), 227 em Lisboa e Vale do Tejo (menos seis do que no final do ano passado), 11 no Alentejo (número que se mantém estável), e 23 no Algarve (mais dois do que em dezembro).Em relação aos especialistas em Pediatria, do total de 2529 inscritos na Ordem dos Médicos, 908 estão na Região Norte, 376 no Centro e 1245 na Região Sul e Ilhas. Mas do total de inscritos, apenas 1328 trabalham no SNS, segundo dados de fevereiro da ACSS, mais três médicos do que no final de 2024. Mais uma vez é o norte que tem o maior número de especialistas nas unidades do serviço público. Ao todo, 561 em fevereiro (menos um que no final de 2024), o centro tem 219, Lisboa e Vale do Tejo 469, mais dois médicos do que final de 2024, o Alentejo 41, mais dois médicos que no ano passado, e o Algarve 37.Para quem está no terreno, o número de especialistas nesta área materno-infantil comprova que a Região LVT é das mais deficitárias em recursos face à população que tem de servir. “É completamente insuficiente, quanto a isto não há muito dizer”, salienta Joana Bordalo e Sá. Em vez de “estarem sempre a tentar arranjar maneira de compensar esta falta de médicos com incentivos, é necessário que os governos percebam que o que é preciso é trabalhar-se com medidas estruturantes para termos médicos nos locais”, diz ainda, responsabilizando a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, por a situação na “ saúde materno-infantil, que é uma área extremamente sensível, estar pior do que quando assumiu a pasta”.Para o dirigente do SIM, “a distribuição desigual do número de especialistas pelo território nacional é um dos motivos que explica os problemas de LVT”, mas concorda que há outros e que “o Estado tem de ser criativo nas medidas para atrair mais médicos para o SNS, nomeadamente para esta região. Já se percebeu que as unidades da região não estão a conseguir atrair pessoas para fazer urgências e temos de incentivar os colegas pela positiva, quer seja pela forma monetária ou pelas condições de trabalho, com mais dias de férias ou outras soluções”.Garcia de Orta, Vila Franca e Santarém assumem falta de recursosNo fim de semana que passou, seis hospitais no sábado e cinco no domingo fecharam as Urgências de Obstetrícia ou de Pediatria ou as duas, mas na semana anterior foram sete e há duas semanas oito. No próximo fim de semana, encerram seis no sábado e quatro no domingo, segundo as escalas publicadas no site do SNS. Quanto aos hospitais não há que enganar, são quase sempre os mesmos: Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra), Garcia de Orta, Barreiro, Setúbal, Vila Franca de Xira, Santarém, Caldas da Rainha e Beatriz Ângelo, em Loures.Fora da região LVT, os fechos também são normais na área da Obstetrícia no Hospital Santo André, em Leiria. No fim de semana que passou , fecharam os Serviços de Obstetrícia do Garcia de Orta, Barreiro, Caldas da Rainha e Vila Franca de Xira, que também fechou o Serviço de Pediatria, tal como o Beatriz Ângelo, em Loures. No próximo sábado, vão fechar os Serviços de Obstetrícia do Amadora-Sintra, Garcia de Orta, Barreiro, Santarém e Pediatria de Vila Franca de Xira e de Loures. No domingo, fecha a Obstetrícia do Garcia de Orta e Barreiro e a Pediatria de Loures e Vila Franca de Xira. O DN contactou as unidades da Região LVT para saber quantos médicos têm e de quantos precisam para que não encerrem as suas portas sistematicamente e o que têm feito para que tal não aconteça, mas só três responderam, assumindo, de certa forma, que os recursos são insuficientes.A Unidade Local de Saúde do Estuário do Tejo (ULSET) explica, na resposta dada, que “o quadro de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital de Vila Franca de Xira dispõe atualmente de nove médicos, entre especialistas e internos, o que constitui um obstáculo ao preenchimento total das escalas”, sem referir, no entanto, quantos mais precisaria para não ter de encerrar as portas durante os fins de semana”, referindo ainda que têm sido realizados “vários procedimentos concursais para preenchimento das vagas existentes, o que acontecerá novamente, muito em breve”. A Unidade Local de Saúde de Almada-Seixal (ULSAS), que integra o Hospital Garcia de Orta (HGO), começa por dizer que a sua preocupação tem sido “procurar assegurar o maior período de funcionamento da urgência e do bloco de partos, em articulação com o serviço, e com o conhecimento da Direção Executiva do SNS”, mas que, atualmente, “conta com 19 especialistas no Serviço de Ginecologia e Obstetrícia e cinco no Centro de Responsabilidade Integrada da área da Fertilidade, num total de 24 especialistas do quadro”. A estes, o HGO acresce 21 internos da especialidade, mas, destaca a presidente da Fnam, “contam sempre com os internos, e não deviam, porque ainda são médicos em formação”. O HGO assume na mesma resposta que “cinco especialistas e cinco internos encontram-se afastados, por motivo de licença de maternidade, baixa por doença ou estágios”. Por outro lado, “apesar do número total de especialistas, nem todos asseguram escalas de urgência, pelo que o conselho de administração da ULSAS está, desde a primeira hora, a envidar todos os esforços para robustecer o número de recursos humanos do serviço, tendo já efetivado duas contratações, que assumirão funções em breve”.A Unidade Local de Saúde da Lezíria, que integra o Hospital de Santarém, foi dos que respondeu ao DN referindo apenas que “as contingências se devem a limitações de recursos humanos, em particular na equipa médica. Neste momento, o serviço conta com 13 médicos especialistas”, na área da Obstetrícia. Mas se a resposta às parturientes já é difícil em Lisboa e Vale do Tejo, os sindicatos alertam para o facto de esta situação poder agravar-se mais com o período que se avizinha de férias.Quantos mais médicos saem, maior é a carga de trabalhoO secretário-geral do SIM volta a defender a criação de uma Urgência Metropolitana para estas duas áreas em Lisboa e Vale do Tejo. “Achamos que pode haver uma concentração de meios nas urgências metropolitanas, como funcionam no Porto, e bem”.Joana Bordalo e Sá vai por outro lado e defende que a situação desta duas especialidades só se resolverá com garantias de “condições dignas de trabalho e salários justos”, porque, sublinha, “o principal motivo das saídas do SNS nestas áreas é a carga de trabalho, que é brutal, temos colegas que têm de fazer 24 horas de urgência por semana e, às vezes, duas a três vezes por semana”.Mas não é só. Os dois dirigentes sindicais concordam que, sobretudo na Região LVT, a implantação do setor privado nestas duas áreas “é muito forte” e que “a concorrência é desleal”, destaca Joana Bordalo e Sá. “Começa logo porque oferecem jornadas de trabalho de 35 horas e mais flexíveis, têm menos utentes, não fazem praticamente urgências e os casos que ali chegam são muito diferentes dos do setor público. No SNS trata-se de tudo e de todos, no privado não. Só lá vai quem pode pagar.” Por isso mesmo, reforça, “a situação é grave para os médicos no SNS, e não é só na Obstetrícia ou na Pediatria, porque existem 60 mil médicos inscritos na Ordem, mas só 31 mil trabalham no SNS, sendo que 10 mil são internos em formação. Se formos a ver, o rácio registado em Obstetrícia e Pediatria é o mesmo a nível geral - só metade dos médicos inscritos na Ordem trabalha no SNS. Se os médicos tivessem melhores condições no SNS, se pudessem ter uma jornada de trabalho mais adequada, se não estivessem obrigados a fazer tantas horas extraordinárias, se tivessem um salário justo, não procurariam opções alternativas.”Nuno Rodrigues salienta também que os médicos de Obstetrícia do SNS e, em particular de Lisboa e Vale do Tejo, têm hoje a vida mais dificultada porque “apanham muitos casos de grávidas de alto risco, que não tiveram seguimento, e algumas chegam às urgências vindas do estrangeiro”. Para o médico qualquer solução a curto prazo não será fácil, e muita coisa terá de começar pela formação. E explica porquê: “Deve haver incentivos para os médicos assistentes que dão formação, tal como já acontece com os colegas da Unidades de Saúde Familiar Modelo B: os orientadores de internos passaram a receber um suplemento e houve até um aumento do número de médicos disponíveis para darem formação. Mas tais incentivos deveriam estender-se à Obstetrícia, como à Pediatria e a todas as outras especialidades”.“Ministério devia ter lançado vagas para novos especialistas e não o fez”O bastonário dos médicos responsabiliza os últimos Ministérios da Saúde pela falta de profissionais no SNS e, em particular, nalgumas especialidades. “Têm feito mal o seu trabalho. Apesar de a Ordem, e eu próprio, vir a alertar há muito tempo para esta situação”, destaca ao DN.Carlos Cortes aproveita para denunciar uma situação que já é recorrente nos últimos dois anos e que envolve os novos especialistas. “Terminam a formação no início de março e, depois, esperam dois, três e até mais meses para saberem onde vão ficar colocados, porque o Ministério da Saúde não lança as vagas assim que terminam a especialidade. Este ano, estamos na mesma, não se sabe, sequer, quando é que as vagas vão ser lançadas”. Como explica, “são dois, três ou mais meses em que os novos especialistas estão a ganhar menos do que deviam e com incertezas no futuro”, quando “antes de acabarem o internato, já os grupos privados os estão a aliciar com contratos”.Carlos Cortes volta a sublinhar que “o Ministério da Saúde tem de aprender com os erros do passado e deve publicar o mapa de vagas para as especialidades o quanto antes, assim que terminam os exames de fim da especialidade, para os médicos orientarem as suas vidas”. Por outro lado, critica também o processo de contratualização dos hospitais, que “deveria ser muito mais ágil, para que algumas unidades conseguissem manter estes profissionais, pois muitas vezes, é a burocracia que afasta os médicos do SNS”. Mas não é só. O bastonário concorda com os sindicatos da classe, quando defendem que “os médicos têm de ter condições de trabalho adequadas para poderem desenvolver o seu trabalho”. “Isto é absolutamente fundamental”, concluiu ao DN.