Sofia Moreira de Sousa: "As ucranianas dão-nos coragem na luta pela liberdade, que damos por garantida na UE"

Deverá ser apresentado esta terça-feira, em Bruxelas, um novo pacote de medidas para a igualdade de género. A representante da Comissão Europeia em Portugal, nomeada em setembro último, faz uma antevisão da estratégia europeia.

É representante da Comissão Europeia em Portugal, , desde Setembro 2021. Com mais de 20 anos de experiência em assuntos europeus, Sofia Moreira de Sousa, de nacionalidade portuguesa, tem experiência na área política, comunicação estratégica e relações internacionais da União Europeia. Foi embaixadora da UE em Cabo Verde, com responsabilidade pela gestão das relações bilaterais e a liderança da resposta local da Equipa Europa à pandemia. Foi ainda embaixadora adjunta da UE na África do Sul; conselheira da secretária-geral adjunta do Serviço Europeu para a Ação Externa e conselheira política do representante especial da UE junto da União Africana, em Adis Abeba. Trabalhou também nas relações da UE com a Rússia, o Cáucaso do Sul e com a Ucrânia, tendo inclusive integrado a equipa do Alto Representante da Política Externa na facilitação da mediação aquando da revolução laranja em 2004. Trabalhou ainda na Agência Espacial Europeia e na Academia de Direito Europeu, em Trier, na Alemanha.

Ao assumir as novas funções em Portugal, no ano passado, Sofia Moreira de Sousa deixou claro que depois de tantos anos a promover a Europa no exterior, iria agora continuar a trabalhar na "paixão no seu próprio país, fomentando o debate e maior participação dos cidadãos no processo de integração Europeia". Hoje, face à guerra na Europa, destaca a importância "desta integração, do trabalho conjunto dos 27 países e das instituições da União Europeia na defesa e promoção da liberdade, igualdade e solidariedade". A promoção de género não está esquecida.

Quais os grandes desafios para a mulher na Europa no âmbito da Estratégia 2020-2025?
É impossível, hoje, falar de desafios sem sublinhar os que as mulheres, homens e crianças têm sofrido na Ucrânia, com tudo o que de abominável traz uma guerra. Condenamos com a maior veemência a agressão militar ignóbil da Rússia contra a Ucrânia, uma violação flagrante do direito internacional e de tudo o que a União Europeia representa e constrói todos os dias. Estamos a dar tudo por tudo para por termo às hostilidades e para apoiar a Ucrânia e o seu povo. Hoje, no Dia Internacional da Mulher, só posso homenagear as mulheres ucranianas, tal como todas as mulheres em zonas de conflito pelo mundo, e as mulheres russas que ousaram manifestarem-se contra a agressão militar à Ucrânia.

E as mulheres que já sofreram descriminação ou violência, nomeadamente no seio das suas famílias. É para elas que os nossos esforços se redobram. A Estratégia para a Igualdade de Género da UE 2020-2025 surge no contexto de progressos alcançados como por exemplo na legislação em matéria de igualdade de tratamento e a integração da perspetiva de género em todas as políticas. O aumento do número de mulheres no mercado de trabalho, em posições de decisão e a melhoria do seu nível de ensino são encorajadores. Mas continuam a existir desigualdades flagrantes. A pandemia trouxe-nos um aumento da violência contra as mulheres, teve um impacto negativo no seu rendimento e afetou negativamente o equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Coisas simples como a maioria de casais, ambos em teletrabalho, montarem a mesa de trabalho da mulher na cozinha e a do homem num quarto "mais calmo". Ou jovens mulheres acharem "uma sorte" que o seu companheiro as ajude nas tarefas de casa ou com os filhos. Isto mostra a diferença de funções e de tratamento, também cultural, que tem de ser desmontada.

De que forma pretende a Comissão Europeia contribuir para a igualdade entre géneros ainda nesta década?
A igualdade de género é um princípio fundamental da União Europeia. Reflete o que somos, a sociedade que queremos e defendemos. É também uma condição essencial para uma economia mais inovadora e competitiva. A EU lidera nesta matéria: 14 dos 20 países mais bem classificados são parte da UE, muito graças à legislação adotada destinada a combater desigualdades específicas. Todavia, nenhum Estado-Membro alcançou a plena igualdade de género e os progressos são lentos, sendo que a pandemia veio mesmo causar alguns retrocessos. Precisamos de dar um novo impulso à igualdade de género. Com esta Estratégia queremos que a violência de género, a discriminação sexual e a desigualdade estrutural entre mulheres e homens passem a ser uma coisa do passado. Construir uma Europa em que mulheres e homens, em toda a sua diversidade, sejam iguais e livres de seguir as suas escolhas e participar na sociedade em igualdade de circunstâncias. Antes de mais: libertar as mulheres e as raparigas da violência e do assédio, adotando medidas jurídicas, clarificando o papel das plataformas na internet na luta contra os conteúdos ilegais e nocivos e combater os estereótipos sociais.

Atualmente, as mulheres ainda ganham menos por trabalho igual. Além de que as mulheres efetuam 75% das tarefas domésticas e dos cuidados não remunerados. Se por um lado temos, pela primeira vez, um Colégio de Comissários europeus equilibrado em termos de género, também temos, pelo outro, apenas 7,5% dos presidentes dos conselhos de administração e 22% dos programadores em inteligência artificial nos países europeus que sejam mulheres. Temos ainda um longo caminho a fazer para um maior equilíbrio em cargos de decisão, nas empresas e na política. Propomos fazê-lo, por exemplo, adotando metas a nível europeu, incentivando a participação das mulheres na política e colmatando o hiato digital entre homens e mulheres. No quadro financeiro até 2027 temos previstas oportunidades de financiamento europeu a projetos que promovam estes objetivos. Se olharmos para as nossas sociedades, a diversidade existe. Para que a diversidade se reflita nos lugares de decisão nas empresas e nas instituições é necessário fazer uma escolha ativa. E vamos incentivá-la.

O que espera hoje da apresentação do pacote europeu para a igualdade de género - "Proposal on preventing and combatting violence against women and domestic violence"? Que medidas de peso sairão daqui?
A violência doméstica e contra as mulheres é um enorme desafio social, com as agravantes de acontecer em todas as idades e em todos os grupos sociais. A violência online contra as mulheres aumenta de forma preocupante. Um terço das mulheres na UE foram vítimas de violência física e/ou sexual e mais de metade foram vítimas de assédio sexual. Há ainda lacunas nas respostas. Muitas mulheres e raparigas estão desprotegidas. E, como infelizmente sabemos, mesmo aqui em Portugal, alguns casos terminam em morte.

Durante o confinamento, foi necessário criar novos instrumentos de denúncia para as vítimas, isoladas em casa com os seus agressores. Também se tornaram evidentes as lacunas na prevenção e na proteção, e a reflexão sobre como as resolver. Temos de intensificar os nossos programas de prevenção e melhorar os serviços que os aplicam, estabelecendo parâmetros de referência mínimos para todo o território da UE.

A Convenção de Istambul do Conselho da Europa é, atualmente, o instrumento jurídico internacional mais eficaz na proteção contra a violência baseada no género. A Comissão Europeia continua empenhada na sua ratificação pelo Conselho Europeu. Enquanto isso não acontece, elaborámos uma proposta legislativa que adotamos precisamente hoje (8 de março) e que apresenta normas mínimas comuns para todos os Estados-Membros em matéria de prevenção, proteção, apoio às vítimas, acesso à justiça e cooperação dos serviços. Muito importante: propomos a criminalização da violência contra as mulheres, incluindo a violência "online" nas plataformas digitais. E também a adoção de um mesmo número de contato em toda a UE, o 116 016, para que as vítimas possam ter acesso rápido a apoio.

Transparência salarial e igualdade de remuneração é um tema muito debatido, mas para muitas mulheres não passa de uma utopia. Como tornar real uma intenção?
O direito à igualdade de remuneração por trabalho igual ou de valor igual entre homens e mulheres é um dos princípios basilares da União Europeia desde o Tratado de Roma de 1957. A Comissão Europeia, já em 2014, adotou uma Recomendação para o reforçar através do mecanismo da transparência salarial. A implementação na prática continua a ser muito difícil.

Desde o início do seu mandato que a presidente Ursula von der Leyen anunciou a adoção de medidas vinculativas em matéria de transparência salarial como uma das prioridades políticas desta Comissão. A Estratégia para a Igualdade de Género 2020-2025 reafirma esse compromisso.

Em março de 2021 a Comissão Europeia apresentou uma proposta que estabelece medidas de transparência salarial, como informações sobre as remunerações para os candidatos a emprego, o direito de conhecer os níveis de remuneração dos trabalhadores que realizam o mesmo trabalho. A proposta reforça igualmente os instrumentos para que os trabalhadores reivindiquem os seus direitos e facilita o acesso à justiça incluindo o direito a uma indemnização por discriminação salarial. Para trabalho idêntico também o tem de ser a remuneração. Para que exista igualdade de remuneração é necessária transparência. Por isso acreditamos que esta proposta contribui, na prática, para limitar as disparidades salariais existentes.

A mobilidade profissional das mulheres na Europa é um dos assuntos da agenda laboral. Como poderá ser incentivada? E que tetos de vidro persistem naquela que é ainda a falta de mobilidade feminina?
Além do reforço da educação, é importante abrir caminho e quebrar bloqueios. Há dez anos a Comissão propôs fixar um objetivo de pelo menos 40% de mulheres nos conselhos de administração das empresas europeias cotadas em bolsa - infelizmente esta proposta foi bloqueada pela preferência de ser uma medida voluntária e não imposta. Mas dez anos passados, vemos que as medidas voluntárias não trouxeram a mudança que necessitamos. O teto de vidro continua a ser real e resistente no topo das empresas europeias. Apenas sete por cento das maiores empresas europeias são lideradas por uma mulher. Os conselhos de administração são uma referência; mas mais importante é o efeito de arrastamento: à medida que os conselhos de administração se tornem mais diversificados, mais diversas serão as contratações de diretores executivos, e de gestores.
Quando a mudança não ocorre naturalmente, é necessária uma ação regulada. Sabemos que a legislação funciona. A Presidente Ursula von der Leyen tem estado muito ativa para que a nossa proposta sobre a presença de mulheres nos conselhos de administração se torne lei. Espero que em breve o consigamos.

No seu entender, como a guerra Ucrânia-Rússia coloca novos desafios à mulher? Que papel pode ter este conflito no desenho de uma nova estratégia de igualdade pós-2025 na Europa?
É muito difícil conseguir analisar esta tragédia na Europa. Para já estamos focados na resposta humanitária para apoiar as vítimas e na resposta nas várias frentes para que a guerra termine. Só mais tarde será possível pensar numa análise mais cuidada do possível impacto, embora saibamos já como as mulheres são especialmente vulneráveis em situações de risco. A guerra exacerba essa vulnerabilidade.

Ouvimos relatos de mulheres a dar à luz em abrigos ao som de bombardeamentos; mulheres que optam por ficar para cuidar de familiares; mulheres que se voluntariam no apoio logístico; mulheres que documentam as atrocidades; mulheres que pegam em armas na defesa da liberdade; mulheres refugiadas que, com coragem, protegem os seus filhos.

Perdurará o exemplo que as mulheres ucranianas nos têm dado de coragem, de força e de luta pela liberdade que tantas vezes tomamos como garantida na nossa União Europeia. Uma União Europeia que acolhe a todas e todos os que fogem das bombas de Putin. Estamos e continuaremos do lado da liberdade, da solidariedade, da igualdade e da proteção da vida humana.

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