SNS. Cirurgias pagas com incentivos foram quase metade das realizadas em horário de trabalho em 2024
A produção cirúrgica adicional nas unidades do Serviço Nacional Saúde (SNS), que é realizada fora do horário normal de trabalho, com o objetivo de 'limpar' as listas de espera, e que é paga às equipas com incentivos, registou nos últimos quatro anos um aumento significativo: 170%, passando de 88.465, em 2020, para 239.172, em 2024.
No último ano, o número de atos cirúrgicos neste regime somaram quase metade dos realizados em produção convencionada, atividade realizada dentro do horário normal de trabalho das equipas, que, ao todo, registou 493.285 atos cirúrgicos nas unidades de todo o país. Mas nestas cirurgias programadas, o aumento de 2020, ano em que foram realizados 369.531 atos cirúrgicos, em plena pandemia, para 2024, com um total de 493.285 cirurgias, não chegou sequer os 25%.
A atividade cirúrgica com incentivos voltou a estar em cima da mesa depois de uma investigação do Exclusivo TVI, na passada sexta-feira, ter divulgado que um médico do Serviço de Dermatologia do Hospital Santa Maria teria recebido, num só dia, 51 mil euros, e mais de 400 mil em vários sábados.
Os montantes têm sido considerados pela própria classe médica e até pelo representante dos administradores hospitalares como “anómalos”, embora já tenha sido admitido que o aumento da atividade com incentivos esteja a levar médicos a receber mensalmente milhares de euros.
Ao DN, representantes da classe médica também explicam que "há menos médicos no SNS e isso também faz crescer as listas de espera e provoca o aumento da atividade a adicional". Por outro lado, as mesmas fontes admitem que, "se há situações anómalas, estas devem ser corrigidas".
A Direção Executiva do SNS (DE-SNS), por seu lado, justifica o aumento da produção adicional, desde 2022, com o facto de a atividade cirúrgica normal ter estado praticamente parada de 2020 até 2021, já que este foi o pior período da pandemia e o Estado de Emergência impunha que apenas fossem realizadas cirurgias urgentes ou emergentes.
“O aumento da atividade adicional verificado nos últimos anos, designadamente a partir de 2021, está diretamente relacionado com o esforço de recuperação das listas de espera acumuladas durante o período pandémico”, refere a DE-SNS na resposta à questão do DN sobre o que pode ter justificado um aumento tão significativo a partir do ano de 2022 (ver tabelas).
A DE-SNS, liderada por Álvaro Almeida, refere ainda que, para limpar as listas de espera, tiveram de ser tomadas outras medidas, nomeadamente “o reforço dos incentivos financeiros à produção adicional interna pelas equipas dos serviços do SNS”, justificando que tal surge “na sequência da pandemia da covid-19, e tendo em conta a suspensão determinada a 16 de março de 2020 da atividade programada não-urgente nos estabelecimentos hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS), verificou-se uma redução significativa da atividade assistencial regular. A diminuição foi na ordem dos 19% nas cirurgias programadas, comparativamente ao período pré-pandemia (2019)”.
E foi o contexto aqui descrito que levou “à necessidade imperiosa de recuperar a atividade assistencial suspensa e que foi determinada, a partir de maio de 2021, a identificação e o reagendamento progressivo dessa atividade. Esta orientação foi operacionalizada pelas entidades prestadoras de cuidados do SNS, permitindo uma retoma da atividade assistencial não-realizada por força da situação epidemiológica provocada pelo novo Coronavírus SARS-CoV-2 e pela doença covid-19, através das Portarias n.º 171/2020 de 14 de julho, n.º 264/2021 de 24 de novembro, n.º 22/2023, de 6 de janeiro, e n.º 189/2023 de 4 de julho. Esta última manteve-se em vigor até 31 de março de 2024”.
Segundo a Direção Executiva, a situação provocada pela pandemia fez com que os hospitais do SNS tivessem de “criar planos específicos de recuperação da atividade cirúrgica e rever o regulamento das tabelas de preços das instituições e serviços, no âmbito de prestações realizadas em produção adicional para o SNS”. Ao mesmo tempo, o SNS teve de se "coordenar com o setor social e privado, sempre que a capacidade instalada do SNS se mostrasse insuficiente".
De acordo com os dados disponibilizados ao DN pela Direção Executiva do SNS, a atividade subcontratada ao setor privado e social caiu significativamente de 2020 para 2021 e 2022, voltando a subir em 2023 e 2024.
Recorde-se que a produção adicional é feita no âmbito do SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia) – ou seja, doentes que esperam para além do tempo que é considerado adequado. E, segundo explicou ao DN o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, os hospitais pagam às equipas mais 50% do valor do custo de uma cirurgia no SNS (por trabalharem fora do seu horário normal), enquanto que, se tivessem de enviar os doentes para uma unidade privada, teriam de pagar esse ato a 100%. A opção de realizar produção adicional nas próprias unidades do SNS acontece por uma questão de “lógica financeira”, já que fica mais barato, mas também porque os doentes o preferem.
No entanto, Xavier Barreto defende não fazer qualquer sentido haver quase tanta produção adicional como produção normal e que tais situações devem ser controladas pelas próprias unidades.