“O modelo de produção adicional é a única forma que os hospitais do Serviço Nacional de Saúde têm de responder às listas de espera crescentes. Porque quando um doente ultrapassa o Tempo Máximo Garantido só há duas opções: ou os hospitais realizam a cirurgia em produção adicional, pagando a 50% a toda a equipa interna, ou enviam o doente para o setor privado e pagam a 100%. A maioria dos hospitais opta por fazer produção adicional, pelo impacto financeiro e porque os próprios doentes também o preferem. Portanto, o problema não está no sistema, mas na produção adicional que possa ser feita sem regras claras e sem eventual controlo.”A declaração é do presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), Xavier Barreto, dias depois de uma investigação do Exclusivo da TVI ter divulgado que um médico do Serviço de Dermatologia do Hospital Santa Maria, em Lisboa, terá recebido 400 mil euros em 10 dias, embora salvaguarde que “devemos aguardar pelos inquéritos instaurados para sabermos o que aconteceu”.Segundo a reportagem da TVI, o médico terá trabalhado ao abrigo do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC), durante dez sábados, a fazer procedimentos a doentes em lista de espera para além do Tempo Máximo Garantido, incluindo os próprios pais.A quantia avultada, que ultrapassa, e muito, os montantes de qualquer remuneração base de colegas dos quadros, está a escandalizar a classe e a sociedade portuguesa. O bastonário dos Médicos anunciou que já pediu informações ao hospital para decidir o que fazer, mas outras entidades, como a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e o Ministério Público, também já anunciaram a abertura de inquéritos para indagar a possibilidade de fraude no processo. .A administração da Unidade Local de Saúde Santa Maria, que integra o hospital, um dos maiores do país, também já instaurou um inquérito, segundo anunciou o presidente da ULS, Carlos Martins, à reportagem da CNN. O mesmo afirmou "desconhecer" o caso e não ter tido alertas do próprio sistema para uma situação destas.Estado tem de rever tabela de atos médicos, alguns já não se justificam como "Cirurgia"A verdade é que o caso já está até a colocar em causa a existência do SIGIC – modelo aprovado em junho de 2024, revisto em 2007, que permite aos médicos do SNS realizarem produção adicional, recebendo mais 50% por cada ato, fora do horário normal de trabalho. Mas o presidente dos Administradores Hospitalares reforça ao DN que o problema não está no sistema, embora o Estado — e uma vez que este sistema não é atualizado há muito tempo — devesse fazer uma revisão à tabela de atos médicos. “Há muitas situações que ainda têm a classificação de "Cirurgia", quando já não se justifica, nomeadamente a retirada de sinais na área da Dermatologia ou das injeções intravítreas, também muito frequente na Oftalmologia.”Ao DN, Xavier Barreto começa por explicar que a produção adicional faz sentido no seio das unidades do SNS, admitindo mesmo que “os hospitais preferem pagar às suas equipas internamente, até por uma lógica de impacto financeiro”, especificando ainda que o sistema tem regras de controlo.“Quando se faz uma cirurgia no âmbito do SIGIC fazem-se todos os registos clínicos do doente, com a sua patologia, comorbilidades e os fatores de risco. Depois disto, deste registo, há um médico, chamado médico codificador, que pega nesta informação e cria o ato médico que vai ser realizado – ou seja, a cirurgia, cujo valor pelo o qual será paga terá por base a sua complexidade e as características do doente. Repare, se alguém estiver de má-fé, digamos assim, pode, por exemplo, classificar aquela cirurgia com maior gravidade do que realmente tinha, considerando que o doente era muito mais complexo do que era.”.MP abre inquérito ao caso do dermatologista do Santa Maria que terá recebido 51 mil euros em apenas um dia . A questão é que, no caso do médico de Santa Maria, “parece que era o próprio a codificar os seus próprios atos. E, se foi assim, foi um erro e está incorreto”, comenta. Disto Xavier Barreto diz não ter dúvidas, referindo que “na maior parte dos hospitais do SNS existe um Gabinete de Codificação, onde trabalham médicos que, às vezes, nem sequer são do hospital. São pessoas de fora que vão ao hospital só para fazer a codificação de atos médicos, através do registo clínico dos doentes”. O administrador diz mesmo que, no hospital onde exerce, o São João, no Porto, “já está em desenvolvimento um sistema informático para que a codificação do ato médico seja feita de forma automática”. Reforçando mais uma vez que “o problema, nesta atividade, como em todas as outras, estamos a lidar com seres humanos, que nem sempre são honestos e íntegros, nem todos cumprem as regras. E poderemos estar perante um caso desses”."Há médicos com horário parcial que depois fazem mais horas em produção adicional"O DN questionou ainda o administrador sobre se é possível haver casos de mais produção adicional num serviço do que produção em atividade normal, dentro do horário de trabalho. Xavier Barreto também é perentório: “Se há, não deveria haver. Uma administração tem de garantir que os médicos não produzem mais de forma adicional do que quando está a trabalhar no seu horário. Penso que nenhuma administração aceitará que, numa tarde normal de trabalho, se façam três cirurgias e, numa de produção adicional, dez. Isto não faz qualquer sentido.”Os doentes precisam de ser operados, mas é preciso "repensar algumas situações, como ter profissionais, médicos, a trabalhar em tempo parcial dez horas, porque têm justificação para isso, mas depois é-lhes permitido fazer 40 horas em produção adicional. Isto merece uma reflexão profunda do SNS, porque não deveria acontecer”. Por outro lado, volta a reforçar a necessidade de se repensar também a complexidade dos atos médicos e o que isso pode estar a representar, em termos de impacto financeiro. “Há especialidades onde se estão a gerar cirurgias, que, se calhar, não deveriam ser geradas. Como retirar um sinal ou fazer uma injeção intravítrea. São situações que até se fazem com alguma rapidez — no caso das injeções, um oftalmologista consegue fazer dezenas destas injeções numa tarde, e, por isto, poderá receber algumas dezenas de milhares de euros ao final do mês.”Para finalizar, Xavier Barreto volta a reafirmar que se deve esperar pelos resultados dos inquéritos, mas que até é possível que haja mais casos idênticos. “O que o SNS tem de refletir é uma eventual revisão das regras.”