Depressão Martinho. Seguros “contra todos os riscos”? Nem sempre é claro
Miguel Marques (nome fictício), de Setúbal, paga mais de 330 euros anuais de seguro automóvel, numa apólice reforçada que prevê especificamente a cobertura de riscos relacionados com “fenómenos da Natureza”. O seu carro escapou ileso da tempestade Martinho, na madrugada de ontem, mas Miguel Marques foi confirmar se o seguro cobriria algum tipo de estrago caso tivesse tido azar. E a verdade é que não: noutra parte do contrato da apólice está especificamente listado que “os sinistros ou danos provocados por fenómenos sísmicos, meteorológicos, inundações, desmorona- mentos, furacões e outras convulsões violentas da Natureza não são segurados”.
Ao DN, Miguel diz que “o contrato é completamente omisso sobre que tipo de fenómenos da natureza estão cobertos”. “Tendo em conta o que aconteceu, vou saber junto da companhia, quando tiver que renovar, afinal o que é que está coberto ou não”.
Susana Correia, jurista da Deco, diz que a associação dos consumidores é questionada por cidadãos “só para perceberem aquilo que contrataram”. Isto porque a linguagem, a terminologia muito específica usada pelo setor dos Seguros, constitui, em si mesma, uma barreira.
“Muitas vezes temos pessoas que nos apresentam simulações e condições de seguro para nós ajudarmos a perceber a linguagem das coberturas. Por exemplo, quando dizemos ‘tempestades e inundações’ parece entendível, mas depois umas falam em ‘fenómenos da natureza’ ou ‘fenómenos naturais’, outras ‘riscos catastróficos’ e, portanto, às vezes há uma certa dificuldade em perceber imediatamente em que é que isto se traduz e em que situações verdadeiramente eu vou estar protegida”, refere a advogada, alertando ainda para o problema com que se deparou Miguel Marques: “as exclusões”.
“O problema é que estas designações não estão uniformizadas, um fenómeno da natureza numa companhia pode não ser necessariamente o fenómeno da natureza da outra seguradora. Portanto, isto é tudo ainda muito casuístico”, salienta Susana Correia.
A outra questão que contribui para que os automobilistas fiquem mais desprotegidos é o preço que custam estas coberturas suplementares. “Muitos portugueses, em virtude de terem um crédito hipotecário, acabam por também ter, por obrigação, um seguro multirriscos na sua casa, que na maioria das vezes até tem estas coberturas de tempestades, inundações. Por aí, estará protegido. O mesmo não acontece no setor automóvel, em que a maioria dos consumidores fica-se por aquilo que é o seguro de responsabilidade civil obrigatório, não entrando nas outras coberturas, de danos próprios, que são mais caras”, salienta.
Na gíria chamam-se “o seguro contra todos os riscos” e são estes que, em alguns casos, permitem cobrir os estragos da tempestade de ontem.
O DN falou com o presidente da Associação Portuguesa de Seguradores (APS), José Galamba de Oliveira, para perceber que percentagem dos subscritores de seguros em Portugal têm cobertura para este tipo de fenómeno, mas o responsável revelou que a APS pediu esses dados às suas associadas - bem como o aumento médio das apólices devido a essa cobertura - e que o resultado desse levantamento deverá ser conhecido nas próximas semanas.
As imagens de dezenas de carros, em vários pontos do país, sobretudo na Grande Lisboa, cobertos de terra, escombros de muros ou esmagados por árvores caídas levantam a questão sobre se as autarquias não terão responsabilidades também.
“É uma boa questão. Mas vamos por partes: o princípio que se aplica, quer aos muros quer às árvores, é: cabe às autarquias zelar pelo bom estado do seu património. Mas o temporal traz-nos uma situação de ventos com intensidade acima do normal e do tolerável. Temos de perceber caso a caso, se a derrocada foi resultado de um fenómeno extremo que por ali passou ou se foi resultado de uma degradação de vários anos”, atira a advogada da Deco.
Ou seja, só uma peritagem poderá fazer a diferença entre responsabilizar a câmara ou ter de ser o consumidor a acionar o próprio seguro. Ou, não o tendo, a ter de assumir todo o custo dos danos.
E um candeeiro público? Esse é, sem sombra de dúvida, responsabilidade da Câmara? Nem por isso. “Há um ponto a partir do qual não existe nem estrutura, nem segurança que aguente. Em última instância será uma perícia a determinar quem tem responsabilidade, são relatórios técnicos de peritos que vão dizer em que circunstâncias estava aquele equipamento e se a sua queda se deveu ou não ao temporal. E, em última circunstância, será um tribunal a decidir. É por isso que estas questões são mais complicadas, porque será um tribunal a decidir em função da prova que se faz.”