"Saúde das crianças não pode ser prejudicada por desentendimentos entre administração e médicos"
O Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) recusou a administração de um medicamento autorizado pelo Infarmed em fevereiro de 2023 a duas crianças de 13 e 14 anos, com Hemofilia A grave, por este ter sido prescrito pela médica que os acompanha desde pequenos e por esta não integrar o Centro de Referência de Coagulopatias Congénitas (CRCC).
No entanto, segundo explicou ao DN o advogado do Sindicato dos Médicos do Centro, que acompanha a médica num processo de assédio moral no trabalho por parte da direção do serviço a que pertence, "ela foi fundadora deste centro. Foi o seu currículo com vasta experiência na área da idade pediátrica que permitiu a criação do centro porque, na altura, não havia mais ninguém com este perfil no serviço".
O DN deu conta deste caso na sua edição de 2 de dezembro, através dos familiares das duas crianças que se consideram discriminadas e que já expuseram o assunto ao hospital, mas sem respostas. Os familiares pretendem continuar com o acompanhamento desta médica, uma especialista graduada em doenças raras, nomeadamente na área do sangue, mas querem que as crianças tenham direito à administração do Ecimizumab.
A recusa deste medicamento às crianças, o qual tem como vantagem a melhoria da sua qualidade de vida, levou o bastonário dos médicos, Carlos Cortes, a pedir esclarecimentos à administração do hospital e às respetivas direções clínica e do serviço em causa, mas, agora, é o presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos (SRCOM), Manuel Teixeira Veríssimo, que vem defender ao DN que "a saúde das crianças não pode ser prejudicada por eventuais desentendimentos entre administração ou direção de serviço e médicos", sublinhando: "Não tenho pormenores sobre este desentendimento, mas uma coisa sei é que as crianças não podem ser prejudicadas."
O DN sabe que o caso da recusa de medicamento às crianças por parte do CHUC foi transmitido à SRCOM a 4 de agosto deste ano pelo Sindicato dos Médicos do Centro, pouco depois de a médica ter sido informada da decisão da administração, mas a falta de qualquer feedback sobre uma tomada de posição da ordem levou a nova exposição em setembro, também sem resposta.
O presidente da SRCOM destacou ainda ao DN que "tanto a Ordem, a nível nacional como a Secção Regional do Centro, não podem permitir uma situação destas ou ficar caladas se há duas crianças que estão a ser prejudicadas por desentendimentos".
O bastonário confirmou ao DN este pedido de esclarecimento, e, na quinta-feira, obteve resposta da administração do hospital. A mesma que o CHUC tinha dado às televisões no dia em que o DN publicou o seu trabalho sobre este caso, na qual referia que, "em relação ao caso noticiado, demonstramos total empatia para com as crianças e os seus pais. As crianças encontram-se a seguir o plano terapêutico de acordo com o protocolo aprovado e avaliação clínica. Os protocolos clínicos são reavaliados de acordo com a evidência clínica", justificando ainda: "Neste momento, o CHUC trata 20 crianças com hemofilia. O tratamento destas crianças obedece a um protocolo terapêutico aprovado pela respetiva Comissão de Farmácia e Terapêutica, sob proposta do Centro Referência. Todos os doentes seguem este protocolo terapêutico. Das 20 crianças em seguimento, 14 encontram-se a receber tratamento com fator VIII e seis Emicizumab".
O bastonário referiu ao DN que já ordenou que esta resposta fosse anexada ao processo para ser avaliada pelo Conselho Disciplinar.
O advogado do SMC, Miguel Monteiro, tinha explicado ao DN que este medicamento, cujo custo anual é de 190 mil euros, estava a ser administrado a outras crianças acompanhadas no CHUC, precisamente por ter sido considerado "uma terapêutica excecional". "Em relação a estas duas crianças irá permitir que, em vez de se injetarem três a quatro vezes por semana com Factor VIII, se injetem uma vez por mês. E se não fosse o protocolo aprovado após a prescrição do medicamento as crianças já podiam estar a recebê-lo".
Recorde-se que o medicamento é recusado com base num protocolo que foi proposto à anterior administração do CHUC pelas direções do serviço que médica integra e do centro de referência após a prescrição dos medicamentos às crianças, o que aconteceu a 4 abril, a primeira vez, e a 23 de abril a segunda. O protocolo foi proposto a 12 de abril e aprovado pela administração a 25 de maio e a médica só soube da recusa a 20 de julho. O documento proíbe que este e outros medicamentos do mesmo tipo sejam prescritos por médicos que não integrem o centro de referência, o que "impossibilitará a médica de tratar qualquer dos seus doentes com os medicamentos que venham a ser aprovados para este tipo de doença, e de os tratar da melhor forma", referiu ao DN o advogado. Ora isto, "é o assédio laboral levado ao extremo", concluiu ainda.
Em relação ao assédio laboral, o DN questionou ainda Manuel Teixeira Veríssimo que confirmou que "a situação foi objeto de queixa a esta Ordem dos Médicos por parte da médica, que foi avaliada e analisada pelo Conselho Disciplinar, mas que, entretanto, foi arquivado, devido à Lei da Amnistia aprovada com a vinda do Papa no verão a Portugal".
O DN sabe também que a médica queixou-se à Ordem antes de ter avançado com o processo de assédio para o Tribunal de Trabalho, em 2019, e que voltou a reiterar essa queixa já após de ter chegado a acordo em tribunal, em fevereiro de 2020, por "esta prática se manter".
O presidente da Secção Regional do Centro, embora sem ter pormenores deste caso concreto, admite que o assédio "existe na Saúde como noutros setores, mas na Ordem há um gabinete onde todas as eventuais queixas podem ser feitas e onde daremos o apoio necessário".
A médica em causa viu o seu caso ser arquivado pela Ordem, devido à Lei da Amnistia, ao fim de três anos de ter apresentado queixa.
O DN questionou o CHUC sobre a questão do protocolo que recusa o medicamento às crianças e sobre a questão do assédio que à médica diz ser vítima, mas continua sem respostas.