'Sagres'. É “uma senhora de 87 anos”, mas está cada vez mais moderna
Entramos na barca e somos conduzidos pelos labirínticos corredores do navio-escola Sagres até à camarinha do comandante. No caminho saltam à vista os retratos de momentos históricos do veleiro, construído em 1937 na Alemanha, em Hamburgo, nos estaleiros Blohm & Voss, que faz parte de um lote de cinco navios-escola similares conhecidos como “Five Sisters” – Cinco Irmãs. Nas paredes – ou melhor, nas anteparas, usando linguagem náutica – estão também colocadas algumas obras de arte e dezenas de crestas (escudetes), que tanto podem ser trocadas entre guarnições como podem tratar-se de troféus atribuídos à Sagres pela participação em regatas ou por proezas marítimas distintivas. A mais recente chegou em 2023, entregue pela Sail Training Internacional, entidade que organiza encontros de grandes veleiros. Nesse ano, estava prevista a presença da Sagres num desfile em Lisboa, mas uma avaria nos geradores, quando a barca estava na Colômbia, colocou em risco a chegada a tempo a horas. A guarnição procedeu à troca do material e, depois, lançou-se numa empreitada de navegação que lhe permitiu entrar no Tejo meia hora antes do desfile. O feito naval seria reconhecido pela organização através da cresta de Outstanding Achievement (Conquista Notável).
Em destaque estão também fotografias das condecorações oficiais que lhe foram conferidas – Ordem do Infante D. Henrique, Medalha Naval Vasco da Gama, Ordem Militar de Cristo, Ordem Militar de Avis, Estrela de Honra - 1.ª classe (Cabo Verde) e Medalha de Mérito Tamandaré (Brasil) – e que tornam este o navio mais condecorado na Marinha portuguesa. As seis fazem parte do estandarte nacional da Sagres, que está colocado em zona nobre do navio, a camarinha do comandante, José Sousa Luís, 46 anos, no cargo desde 27 de setembro de 2024.
A camarinha é o espaço de trabalho do comandante. Decorado em tons de verde, que contrastam com o envernizado das paredes de madeira, salta também à vista o fundo azul de uma das várias pinturas a óleo que o francês Roger Chapelet (1903-1995) dedicou à Sagres, ladeada por retratos de Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, e do Infante D. Henrique, o Navegador, figura maior da era das Descobertas.
É também na camarinha, dotada de uma sala de refeições, que se realizam os encontros oficiais. Por lá já passaram chefes de Estado, monarcas e outras figuras públicas da História portuguesa, como os atletas Carlos Lopes e Rosa Mota ou a fadista Amália Rodrigues (1920-1999).
Mas, ao contrário dessas ocasiões solenes, no dia em que o DN visita o navio o casco não repousa no leito de um rio ou na água do mar. E, fora da camarinha, não se escuta o barulho das ondas, mas sim o de berbequins, martelos e outras ferramentas. A Sagres está em doca seca desde julho, no estaleiro da Naval Rocha S.A,. na Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa, para trabalhos de manutenção, reparação e, sobretudo, de modernização.
“Os navios devem entrar em doca seca após um período que, não sendo um relógio suíço, pode ir de cinco a oito anos e a última vez que isso tinha acontecido com a Sagres foi em 2019. Além de toda a revisão do aparelho – cabos, velas, sistema de navegação, etc. – estamos também a substituir uma grua, os geradores elétricos, o quadro elétrico principal e a instalar duas estações de tratamento de águas-residuais mais modernas, para manter os padrões ambientais que estão previstos, sendo que este navio foi o primeiro grande veleiro a receber uma bandeira azul, em 2009. Esta modernização é no sentido de ir acompanhando a evolução, senão o navio torna-se um museu. A Sagres é uma senhora com 87 anos e para que continue a navegar há coisas que vão tendo de ser substituídas”, explica o comandante José Sousa Luís, recordando, por exemplo, que o navio-escola já deu três voltas ao mundo (1978, 1983 e 2010) e que viu a quarta interrompida a meio devido à pandemia de covid-19.
A entrada em doca seca também permite realizar operações menos habituais, mas necessárias à boa manutenção. Uma delas é a “limpeza das obras vivas”, toda a parte do navio que fica abaixo da linha de água. Fazem-se também radiografias à chapa para perceber se mantém a espessura correta (10 milímetros) e testes robotizados para avaliar a necessidade de decapagem de partes do casco, onde ainda resistem alguns dos rebites originais da barca. Está ainda em curso a substituição dos ‘zincos’, para assegurar a proteção catódica da barca. O zinco, por oxidar mais facilmente, funciona como “metal de sacrifício”, pois, através de um processo eletroquímico, acaba por atrair para si o efeito corrosivo provocado pela água salgada, poupando a chapa de aço do navio.
Em doca seca há ainda a oportunidade de verificar a condição do porão e respetivos segmentos. Para tal, são feitas aberturas no casco e retirados, um a um, centenas de lingotes em chumbo e outros materiais que servem como lastro para o navio (dão-lhe peso). A cada compartimento corresponde um determinado número de lingotes, pelo que têm de ser agrupados, numerados e, posteriormente, após a vistoria, recolocados no mesmo local para garantir a estabilidade e equilíbrio da barca.
Regresso em breve ao habitat natural
São, assim, várias as transformações em curso na Sagres. Desafiado pelo DN a escolher a que mais destaca, o mestre da barca, Marcos Moreira, responsável pelo aparelho do navio, quer da manutenção, quer da operação, elege a colocação da nova grua. “Vai, por exemplo, permitir responder de forma mais rápida e ágil em caso de homem ao mar (salvamentos) e em toda a logística que diz respeito à atracação, colocação de material e mantimentos a bordo e outros aspetos relacionados com a manutenção. É uma grua mais robusta, moderna, já com controlo à distância. É, de facto, um upgrade”, diz o sargento-ajudante, natural de São João da Madeira.
Embora já tenha passado por várias posições na Sagres, só assumiu a de mestre em novembro, pelo que ainda não desempenhou a função “com a barca no seu habitat natural, que é dentro de água, com as velas no sítio onde devem estar e com os mastros devidamente aparelhados”. “Quando isso acontecer, aí sim vou sentir-me realizado”, acrescenta.
Esse momento está para breve, conforme revela ao DN o comandante José Sousa Luís. “Estima-se que o navio termine esta docagem, esta modernização, durante o mês de abril e em maio é expectável que a Sagres esteja nas comemorações do Dia da Marinha [20 de maio, dia em que Vasco da Gama chegou à costa da Índia, em 1498], que este ano decorrem em Viana do Castelo, onde iremos abrir para visitas.”
Do conjunto de alterações de que a Sagres beneficiou, resulta uma certeza para o comandante: o navio-escola ficará melhor preparado para cumprir a sua missão. Esta, segundo o militar, assenta em “três grandes vetores” – “a formação, o apoio à diplomacia política e económica e o acolhimento à diáspora portuguesa espalhada pelo mundo”.
Enquanto navio-escola, o comandante (especializado em navegação e com o posto de capitão-de-fragata) destaca a abrangência do que é ensinado aos jovens cadetes: “Falamos não só da navegação astronómica, que é aquela mais mítica, em que aprendem a tirar a posição a partir da medição da altura dos astros, da lua, dos planetas, das estrelas, do sol, mas também a navegação costeira, navegação oceânica, navegação em águas restritas, marinharia, comunicações, máquinas marítimas, regulamentos... Há aqui um conjunto muito grande de oportunidades para os cadetes através da viagem de instrução, onde põem em prática aqueles conhecimentos mais teóricos. Este navio é uma escola de mar, para que os oficiais, de facto, saibam andar no mar. E um veleiro faz toda a diferença. Num navio grande, moderno, com máquinas, normalmente o pessoal está fechado na ponte e aqui a ponte é aberta. Portanto, faça chuva ou faça sol, as pessoas estão cá fora. E essa é a melhor maneira de aprender a navegar e a estar no mar. Além disso, um veleiro fortalece o espírito de equipa, pois toda a manobras da velas, e até do leme, é manual.”
Quanto à diplomacia, a Sagres, que o comandante classifica como “uma embaixada itinerante de Portugal”, sempre que atraca num porto estrangeiro pode prestar apoio às embaixadas ou representações nacionais, promovendo, por exemplo, receções a bordo que servem para dar a conhecer um pouco da história do país e dos sabores da gastronomia nacional.
“Nesse tipo de iniciativas, normalmente, servimos um Bacalhau à Brás ou um Bacalhau com Broa, um Arroz de Pato, enfim, pratos tipicamente portugueses e com entradas tradicionais: o bolo do caco é um must. E no final é sempre servido um pastel de nata, feito aqui a bordo”, conta José Sousa Luís. Este tipo de eventos também estão disponíveis para empresas nacionais que queiram promover os seus produtos, mediante solicitação e pagamento do serviço.
A representação do país em grandes eventos também entra neste vetor. A Sagres foi, por exemplo, a Casa de Portugal nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, e a judoca Telma Monteiro, após conquistar a Medalha de Bronze, fez questão de subir a bordo para tirar uma fotografia junto ao leme por se rever na frase que este tem inscrita e que é a divisa da Marinha desde 1863: “A Pátria honrae que a Pátria vos contempla.”
Um pedaço de Portugal
O terceiro foco da Sagres, o “acolhimento à diáspora portuguesa”, é mais difícil de medir, porque aqui entramos no campo dos afetos, na ligação sentimental que milhões de emigrantes e seus descendentes, espalhados pelo mundo, nutrem por Portugal. Sempre que a Sagres atraca num porto ou fundeadouro internacional – já esteve em 268, de 62 países diferentes – a barca é, literalmente, um pedaço de território com soberania portuguesa que ali chega (tal como o é uma embaixada). “Os emigrantes quando entram aqui matam saudades de casa. Já vi pessoas a chorar, já vi até um senhor que quando subiu a bordo beijou o convés. O próprio convívio com a guarnição é importante para eles, pela questão da língua, da cultura, do pastel de nata ou da cerveja portuguesa que possam beber a bordo e que já não experimentavam há muito tempo. Muitas vezes até nos convidam para ir jantar as suas casas. É um tipo de apoio que, não sendo mensurável, é muito estimulante para nós”, garante ao DN.
Durante a visita guiada é notória alguma reverência com que José Sousa Luís se refere à barca, utilizando mais do que uma vez a palavra “senhora” para falar da Sagres. O comandante confirma o sentimento de respeito pela história do navio-escola e pelo papel que este desempenha: “Todos os militares que servem na Marinha a bordo da Sagres têm um misto de sentimentos. Orgulho por pertencerem a este navio mítico, que todos os portugueses conhecem, e ao mesmo tempo uma responsabilidade muito grande por o fazerem. Este navio representa a Marinha, representa o país em todos os portos e todos os mares onde navega e onde atraca. E, portanto, carregamos essa responsabilidade de dar uma boa imagem quer da Sagres, quer da Marinha, quer do país”, conclui o militar.