João Miguel Gonçalves pilotou um F16 pela primeira vez em 2009.
João Miguel Gonçalves pilotou um F16 pela primeira vez em 2009.Nuno Brites

Top Gun português leva 2400 horas a voar num F16. “É um fascínio que não desaparece”

João Miguel Gonçalves, tenente-coronel e comandante operacional da Base Aérea 5, em Monte Real, é o piloto português no ativo com mais tempo de voo no caça norte-americano.
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Aos 40 anos, o tenente-coronel João Miguel Gonçalves já teve de lidar centenas de vezes com o perigo e a pressão de um trabalho em que um erro mínimo pode ser fatal. Aos comandos de um F16, o versátil caça norte-americano que em 2024 cumpriu 30 anos ao serviço da Força Aérea Portuguesa (FAP), o piloto-aviador já escoltou o Papa (Francisco, em 2017), participou em dezenas de exercícios nacionais e internacionais e em missões da NATO de policiamento aéreo nos países Bálticos ou na Islândia, carregando mísseis e bombas reais enquanto cruza o céu a uma velocidade que pode atingir os 2100 km/h. Mas, como explica ao DN, os momentos de maior tensão acontecem em terra e são despertados por uma simples campainha.

“No ar há adrenalina, mas é controlada, pois existe uma grande cultura de segurança em tudo o que fazemos e há linhas que não podem ser ultrapassadas. Quem o fizer, provavelmente, fica impedido de voar (grounded). Eu diria que o momento em que sinto a adrenalina máxima é quando toca o sinal de alarme que aciona os pilotos que estão de prontidão e temos apenas 15 minutos para estar no ar. Já me aconteceu a meio da noite. Em minutos temos de passar de um estado relaxado para o de alerta”, conta João Miguel Gonçalves, na Base Aérea N.º 5, de Monte Real, onde é comandante operacional e onde estão estacionados os 28 F16 nacionais – divididos em duas esquadras (Jaguares e Falcões).

No total, soma 2400 horas a voar em F16. Olhando para os números de outra forma, são 100 dias exatos, mais de três meses da sua vida, que passou a pilotar o mais equipado e icónico avião de combate da FAP. Um número que faz dele o piloto português no ativo com mais horas a bordo do caça. As mais de 2000 também lhe dão acesso a um restrito clube de aproximadamente uma dezena de militares que atingiram essa fasquia e que é liderado pelo brigadeiro-general Carlos Lourenço, o recordista, com quase 3000 horas.

O voo inaugural do F16 remonta a 1974, ano que em Portugal seria marcado pela revolução de Abril. Passaram 20 anos até a FAP ser reforçada com os seus primeiros F16. Em 1994, João Miguel Gonçalves tinha apenas 10 anos, mas o sonho de ser piloto já fazia parte do seu imaginário de criança. “Não sei precisar exatamente o momento em que aconteceu, mas era mesmo muito novo e já tinha esse fascínio pela aviação. Creio que é um traço comum a todos os pilotos que temos aqui. Aliás, é engraçado, se reparar, quando estiver junto a um piloto e passar um avião vai vê-lo a olhar para o céu. O piloto não resiste. É um fascínio que não desaparece”, revela o militar, natural de Lisboa.

O sonho de ser piloto tinha ainda uma nuance: a ambição era comandar aviões de combate. Apesar de não ter na família laços com as Forças Armadas, em 2002, mal acabou o liceu, João Miguel Gonçalves entrou na Academia da Força Aérea e, num flash, já estava no cockpit de uma aeronave. “Tinha 17 anos. Na verdade, já pilotava aviões antes de ter a carta de condução, porque quando entramos na Academia vamos logo para o curso de Pilotagem Aeronáutica e temos de fazer um estágio de voo para se perceber se temos ou não alguma proficiência para o fazer”, recorda.

“Estamos sempre a estudar”

Esse seria apenas o primeiro passo de um longo e exigente caminho formativo, que continua em marcha. Além da aquisição de novas competências/cursos, o piloto tem de renovar permanentemente as que já possui para manter as habilitações obrigatórias para voar. “O crescimento e atualização do conhecimento do piloto é constante. Estamos sempre a aprender, sempre a estudar”. O ritmo é veloz: o curso iniciado na Academia da FAP seria concluído com o tirocínio e João Miguel Gonçalves, juntamente com mais 24 pilotos, teve a oportunidade de o fazer nos Estados Unidos, tendo sido colocado na base militar de Laughlin, no sul do Texas, “uma experiência espetacular, pois permitiu ter contacto direto com a maior Força Aérea do mundo”.

Concluído o curso, os jovens pilotos preenchem a chamada “dream sheet”, onde listam o tipo de aeronave que querem comandar. E, sem surpresa, no topo da lista de desejos de João Miguel Gonçalves estava o F16. É aqui que entra em jogo outra vertente que o tenente-coronel considera fundamental em qualquer jovem que queira seguir a carreira militar: ter uma “mente aberta”, que lhe permita lidar melhor com uma eventual desilusão, já que muitos podem querer pilotar um F16 mas, no final do dia, poucos o conseguirão fazer. “Há candidatos que chegam à Força Aérea e isso é a única coisa que querem fazer na vida. Depois, quando não conseguem entrar, é complicado. É importante ter a mente aberta e ponto a ponto, etapa a etapa, tentar progredir”, avisa.

João Miguel Gonçalves segura placa que é atribuída a todos os pilotos que superam as 2000 horas de voo num F16.
João Miguel Gonçalves segura placa que é atribuída a todos os pilotos que superam as 2000 horas de voo num F16.Nuno Brites

Seriam precisos mais cursos especializados em aviões de combate (em Beja) e em F16 (na Bélgica) para João Miguel Gonçalves pilotar, pela primeira vez, o caça norte-americano, em 2009. Nos anos seguintes, até 2018, obteve todas as certificações possíveis de voo, incluindo a de instrutor e a do curso na Fighter Weapons School, na Holanda, o equivalente europeu ao título norte-americano de ‘Top Gun’, que Hollywood celebrizou com os filmes Ases Indomáveis (1986) e Maverick (2022), ambos protagonizados por Tom Cruise. O curso dá-lhe direito a envergar um patch próprio, que exibe na manga esquerda do fato (na direita tem outro, também especial, atribuído a quem supera as 2000 horas de voo na aeronave).

João Miguel Gonçalves pilotou um F16 pela primeira vez em 2009.
F-16, bombas e muito treino. Enquanto não há novo aeroporto, a missão no Campo de Tiro dispara

E os filmes? Como olha o piloto real para o que vê no ecrã? “Há ali pontos que se tocam. No último filme fizeram um trabalho excecional a colocar o espectador no avião. É muito parecido. Agora, o nosso trabalho diário e o que nos leva até a uma missão acaba por ser diferente do que é mostrado. Nós fazemos vários tipos de missões no F16 e cada uma tem um ciclo de planeamento. Entre a preparação, o briefing, o tempo de voo – que varia consoante a missão – e o momento de aterrar podem distar à volta de cinco horas. E, após isso, ainda temos o debriefing e este pode demorar uma hora ou, até, chegar às cinco. É aí que analisamos tudo o que fizemos. Se pensarmos em desportos coletivos, cada equipa tem sua tática e nós temos de analisar a nossa para sabermos se foi a correta. Isso deve ser feito no próprio dia, a quente, para termos toda informação presente. Hoje, com a digitalização, esse processo é mais rápido, mas quando comecei a voar ainda utilizávamos cassetes. Na verdade, o dia de um piloto de F16 é sempre muito longo”. Bem diferente dos filmes.

“Tinha 17 anos quando comecei a voar. Na verdade, já pilotava aviões antes de ter a carta de condução"

João Miguel Gonçalves

Outra realidade que Hollywood não mostra é a fatura física que implica voar a velocidades supersónicas, sujeitos à força G provocada pela aceleração e com recurso a máscaras de oxigénio. Tal como acontece nos desportos de alta competição, também na aviação militar se tem assistido a uma evolução rápida no tipo de preparação física, cada vez mais centrada no indivíduo e nas suas características particulares e menos em aspetos gerais que se aplicavam a todos.

“Aqui em Monte Real implementámos, há cerca de um ano, um programa de alta performance onde começamos a incorporar a parte da fisiologia, sendo possível trabalhar piloto a piloto. Antigamente, cada um decidia o que é que precisava de fazer, mas hoje há um acompanhamento mais pessoal que começa logo pela nutrição. Cada piloto tem queixas diferentes e necessita de um treino diferente. Há voos que são muito exigentes para o corpo. A força G, o material com que voamos, o capacete, tudo isso junto provoca maior desgaste ao nível do pescoço, da cervical, e o que visamos com este programa é tratar de cada caso individualmente para evitar que, daqui a uns anos, os pilotos tenham problemas”, sublinha o comandante operacional da BA5. Não há um limite de idade para pilotar um F16, mas as provas médicas e físicas que têm de prestar todos os anos, mais cedo ou mais tarde, acabam por os afastar, assim como a subida na hierarquia – o tipo de funções e compromissos que têm de desempenhar exigem tempo, pelo que sobra cada vez menos espaço para cumprirem o número de voos exigidos para estarem habilitados a voar.

Por enquanto, essa não é uma preocupação para João Miguel Gonçalves. O topo da hierarquia não está longe (faltam dois postos – coronel e, depois, general), mas, aos 40 anos, continua a ser piloto-instrutor e isso implica fazer um determinado número de voos por mês para preservar a habilitação.

Uma máquina de guerra

Por baixo do edifício onde estão sempre dois pilotos em prontidão, em turnos de 24 horas, ficam também dois F16 prontos a descolar. Saltam à vista uma dúzia de fitas coloridas espalhadas pelas aeronave. São as Remove Before Flight (retirar antes do voo) e têm uma dupla função: a sua remoção serve como medida de segurança da aeronave e, ao mesmo tempo, aciona os mecanismos a que estão ligadas para que o F16 possa descolar e utilizar o armamento que transporta. O piloto entra no cockpit munido de um kit com items básicos – alimentos, ferramentas, etc – a que irá recorrer se tiver de ejetar-se durante o voo. A composição do kit varia consoante a região/teatro de guerra onde decorre a missão. Já os cursos de sobrevivência fazem parte da formação dos pilotos de combate. “E lembro-me muito bem do que aprendi lá”, garante, bem disposto, o tenente-coronel.

Num dos hangares da BA5 está parado outro F16, cuja a cauda foi pintada com as imagens de um Jaguar e um Falcão, as esquadras de Monte Real, para assinalar os 30 anos de serviço na FAP. João Miguel Gonçalves vai contornando o avião, que visto de perto é ainda mais impressionante, dando explicações sobre as capacidades do aparelho. São 15,03 metros de comprimento, 9,45 de envergadura e 5,09 de altura. Vazio pesa 8,2 toneladas.

O tenente-coronel é também instrutor de voo. Na manga do fato está o patch do curso na Fighter Weapons School, equivalente europeu do Top Gun.
O tenente-coronel é também instrutor de voo. Na manga do fato está o patch do curso na Fighter Weapons School, equivalente europeu do Top Gun.Nuno Brites

A cabine do piloto é exígua. À esquerda do painel de instrumentos de voo fica uma alavanca que desliza horizontalmente e que, na prática, é o acelerador, servindo para dosear a quantidade de energia que é fornecida ao motor. Do lado direito temos, simplificando, uma espécie de joystick com o qual o piloto controla a direção do avião e onde se destacam o gatilho do canhão e alguns botões vermelhos. “Sim, tudo o que é vermelho é para disparar”, confirma o militar. O F16 é uma poderosa e letal máquina de guerra. Saber lidar com o poder destrutivo do aparelho que comanda é algo que o piloto aprende com a consistência do treino.

“Sabemos que todas as ações que tomamos vão ter uma consequência. Agora, o militar tem que estar pronto para cumprir a missão e o objetivo que está delineado. Uma da características do piloto de F16 é a necessidade de uma tomada de decisão rápida, por vezes com pouca informação. O treino que fazemos diariamente é precisamente para isso: conseguirmos ter toda a informação para decidir corretamente. Depois, tudo o que fazemos está baseado em ‘rules of engagement’, um conjunto de regras que estão delineadas, pelo que todos os pilotos sabem quais são as linhas que não podem cruzar”, sublinha João Miguel Gonçalves, concluindo: “Quando voamos com o avião de alerta sabemos que estamos a cumprir uma missão e que se alguma vez tivermos de usar o armamento é para defender algo que é importante”.

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Transitar para o F35 para manter relevância

A Força Aérea continua a fazer a atualização dos sistemas com que operam o F16, tanto a nível de software como de hardware, para os manter operacionais e aptos a participar em missões internacionais. Mas o desejo já expresso pelo chefe do ramo, o general João Cartaxo Alves, é que o país invista em novas aeronaves, nomeadamente para os chamados aviões de 5.ª geração, como os F35, famosos pela quase “invisibilidade” perante os radares inimigos, utilizando já tecnologia apoiada por Inteligência Artificial e tendo uma maior autonomia de voo (transportam quase o dobro do combustível).

A transição, que já está a ter lugar em outras forças aéreas de parceiros de Portugal na NATO, também será a forma do país manter a sua capacidade de defesa e um papel relevante perante os seus pares. Uma visão partilhada pelo tenente-coronel João Miguel Gonçalves, que já em 2018, num trabalho de investigação individual no Instituto Universitário Militar, abordou os desafios de manter o F16 a operar com as aeronaves de 5.ª geração de países aliados. “É importante haver esta transição para acompanharmos o que estão a fazer os nossos parceiros e para continuarmos a evoluir. É essencial porque a tecnologia está sempre a evoluir e chegará a um ponto em que a nossa plataforma não terá muita capacidade de o fazer”, explica ao DN.

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