No Barreiro, o hospital público é um dos que mais sofrem com os constrangimentos do SNS, com encerramentos frequentes de serviços de urgência. No último sábado, foi a urgência de ginecologia-obstetrícia que esteve encerrada. Em paralelo, a CUF está a construir um novo hospital no concelho, num investimento de 55 milhões de euros. Em Leiria, o grupo Lusíadas Saúde apresentou um pedido de licenciamento para a construção de um hospital na zona do Vale Sepal, num investimento estimado em 14,3 milhões de euros. Em Setúbal, o Hospital da Luz vai duplicar a sua oferta de serviços, com um investimento de cerca de 60 milhões de euros, cuja conclusão está prevista para 2028. Em Aveiro, o grupo Trofa Saúde avançou para a construção de um novo hospital, num investimento de cerca de 80 milhões de euros, com abertura prevista para o final de 2028. No total, segundo contas da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), os quatro principais grupos de saúde privados do país anunciaram e/ou avançaram em 2025 com investimentos superiores a 1.500 milhões de euros, entre novas unidades, tecnologia e equipamentos. Isto num setor que nas últimas duas décadas tem crescido exponencialmente: segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, o número de unidades de saúde privada em Portugal passou de 89 em 2003 para 130 em 2023 (46% mais). Para a FNAM, é evidente um padrão consistente: os territórios onde o SNS enfrenta maiores dificuldades de funcionamento - seja por falta de médicos, escalas incompletas, sobrecarga de profissionais, encerramento ou limitação de serviços, ou degradação de infraestruturas - coincidem com aqueles onde o setor privado da saúde tem vindo a anunciar investimentos de grande dimensão, sobretudo na abertura de novas unidades. "Estão a tentar ocupar, sobretudo, zonas que são extremamente carenciadas. Isto é uma evidência", aponta Joana Bordalo e Sá ao DN, reportando à forte concentração de investimentos na Área Metropolitana de Lisboa (Barreiro, Setúbal, Seixal, Santarém), na Área Metropolitana do Porto (Gaia, Maia) e cinturas urbanas "onde o SNS está fragilizado, regista encerramentos de urgências, escalas incompletas e subdimensionamento crónico". A presidente da FNAM cita "um exemplo muito concreto e paradigmático, de Penafiel, até para fugirmos um bocadinho da realidade de Lisboa e Vale do Tejo. O hospital público (Padre Américo) está subdimensionado para servir meio milhão de habitantes do Tâmega e Vale do Sousa, tem equipas exaustas, sobretudo em Medicina Interna, e infraestruturas insuficientes. No entanto, foi inaugurada em outubro uma unidade privada de 50 milhões de euros, com presença da secretária de Estado da Saúde". “Há uma transferência quase que direta do SNS para o privado”, denuncia Joana Bordalo e Sá, que esclarece não ter "qualquer problema ideológico relativamente ao setor privado e ao setor social", mas alerta que este crescimento da oferta de saúde privada se alimenta das "dificuldades estruturais" do Serviço Nacional de Saúde. E isso, reforça, é fruto das "opções políticas de diversos governos e, agora, concretamente, do governo de Luís Montenegro". "A verdade é que, enquanto nós estamos a assistir, no dia a dia, a um SNS com urgências encerradas, com grávidas que andam quilómetros para ter os seus bebés - e já vamos em 78 bebés desde o início do ano que nasceram nas ambulâncias, na rua, ou no carro - e mais um inverno com tempos de espera de 15 e 18h nas urgências, vemos, em simultâneo, o nível de investimento que os grandes grupos privados estão a fazer", expõe Joana Bordalo e Sá, para quem o privado cresce onde o SNS falha e não é por acaso, mas sim por ausência de política pública. “Não faltam médicos no país, faltam no SNS”, lembra a dirigente sindical, apontando o dedo à “incapacidade” das políticas dos sucessivos governos em reter profissionais através de valorização da carreira e condições de trabalho dignas. A presidente da FNAM critica também a postura do Governo liderado por Luís Montenegro e do ministério tutelado por Ana Paula Martins. “Acima de tudo, é responsável por aquilo que não se dispõe a fazer, que é negociar de uma forma séria com os médicos e com os outros profissionais de saúde. Não faz parte do atual programa de governo de Luís Montenegro, nem fazia do anterior, nenhuma linha sobre a valorização da carreira médica, a negociação de condições de trabalho e também uma política de melhoria de infraestruturas", sublinha. “O que foi contemplado até agora é totalmente insuficiente”, afirma, adiantando que a federação voltará a reunir-se em janeiro com o Ministério da Saúde para revisão dos acordos coletivos de trabalho e discutir questões como salários, horários, formação, progressão na carreira e parentalidade. "É óbvio que numa negociação nunca se consegue o 100% daquilo que pretendemos. Agora, o que não é aceitável é que, da outra parte, até agora, tenha sido 0%". O impacto na retenção de médicos é evidente, segundo a FNAM. “Perdem-se profissionais para o privado, para o social, para a prestação de serviços, para o estrangeiro, e depois transferem-se doentes, não é”, explica Bordalo e Sá, para quem "os grandes grupos privados investem porque sabem que haverá retorno, a curto, médio e longo prazo com as opções políticas em curso". Na perspetiva da FNAM, o SNS deve continuar a ser "o pilar central do sistema de saúde", por ser "o único que não pode recusar cuidados e que assegura funções essenciais como a prevenção da doença e a promoção da saúde". “Não faz sentido caminharmos para cuidados de saúde de primeira e de segunda”, alerta.