O bastonário dos Farmacêuticos, Hélder Mota Filipe, alertou o país para o facto de não haver uma Reserva Nacional Estratégica de Medicamentos e que se alguém dissesse que esta existia, tal como um Plano de Contingência para a Saúde, “era mentira”. Estas declarações foram feitas ao DN uma semana depois do apagão de 28 de abril, o qual, segundo este responsável, foi um “sério aviso” de como “o país está organizado e funciona”, dizendo mesmo que “se o apagão tivesse durado mais 24, 48 ou 72 horas, como inicialmente se previa, haveria um corte no fornecimento dos medicamentos. As situações que agora conseguiram ser bem geridas, tornavam-se mais problemáticas”.O alerta gerou polémica. O Infarmed, autoridade que regulamenta o medicamento, responde ao DN, em comunicado, que “Portugal tem instalado um polo da reserva europeia de medicamentos, que garante acesso em 24 horas” e que “durante o apagão o acesso da população aos fármacos estava garantido”. O Ministério da Saúde reiterou o mesmo. “Portugal tem, em contexto europeu, uma reserva estratégica de medicamentos. É ativada através do Resc EU/Mecanismos Europeu de Proteção Civil. Há 16 países com lotes (armazéns) com medicamentos. Um deles é Portugal”. Mas confrontado com estas questões, o bastonário reforçou: “Não vale a pena dizer que temos, uma Reserva Nacional. A reserva de que falam é para gerir a nível europeu. Isto não é dizer a verdade à população, mais vale assumir que não temos e que vamos fazer tudo para ter urgentemente”. E continua: “O ministério não consegue mostrar que temos o que não temos. Pode arranjar alternativas para fazer durar a pílula, como dizer que temos um polo de reserva europeia, mas não temos Reserva Nacional.”Despacho conjunto da Defesa e da Saúde não avançou por Governo entrar em gestãoO DN sabe que o Governo tinha pronto um despacho conjunto dos ministérios da Defesa e da Saúde, a ser assinado pelo secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional e pela secretária de Estado da Saúde, para criar um o grupo de trabalho que deveria apresentar uma proposta para a criação de uma Reserva Nacional para a área da Saúde, Medicamentos e dispositivos.No texto a que o DN teve acesso é referida a criação do “Grupo de Trabalho para proposta do modelo de governação da reserva estratégica nacional, no seguimento da implementação da reserva estratégica europeia RescEU em território nacional”. Simplesmente, segundo o que foi explicado ao DN, o despacho não avançou devido à queda do Governo e à sua entrada em funções de gestão. Mas o mesmo irá constar da pasta de Transição para o próximo Governo, de forma a que siga o seu caminho de implementação. Uma novidade que fez o bastonário dos Farmacêuticos, também ex-presidente do Infarmed, comentar: “Isto só demonstra que não há uma Reserva Nacional, e que o processo estava a começar a ser estruturado, mas ainda bem que assim é.”.Apagão poderia levar a "corte de medicamentos”. Farmacêuticos dizem que não há "reserva estratégica". O documento deixa claro que a criação deste grupo de trabalho era para “reforçar a capacidade nacional de preparação e resposta a emergências complexas tornou-se uma prioridade, evidenciada pela experiência da pandemia covid-19”, acrescentando que “a vulnerabilidade das cadeias de abastecimento e a necessidade de robustecer a autonomia estratégica em áreas críticas para a saúde demonstraram a importância de assegurar a disponibilidade de contramedidas médicas e não-médicas para proteger a saúde e a segurança dos cidadãos em momentos de crise”.A medida é ainda sustentada nas “iniciativas RescEU da União Europeia”, as quais têm tido “um papel fundamental no fortalecimento da resiliência dos Estados-membros, através da criação de reservas estratégicas e da promoção da cooperação transfronteiriça”. Aliás, foi neste sentido que Portugal, em 2023, “submeteu e viu aprovada uma candidatura ao RescEU, para a constituição de uma reserva estratégia europeia localizada no nosso país. Num consórcio que integra várias entidades do Ministério da Saúde e do Ministério da Defesa Nacional, e com um financiamento aprovado superior a 146 milhões de euros. O desenvolvimento deste projeto iniciou-se em 2024, representando uma oportunidade crucial para reforçar o conhecimento, a resiliência e capacidade logística das entidades envolvidas no que diz respeito à compra, armazenamento, gestão de stocks e distribuição de medicamentos e outros dispositivos médicos”, lê-se no documento.Mais. O “atual cenário geopolítico, marcado por conflitos armados e tensões comerciais” veio ainda “reforçar a necessidade de assegurar a disponibilidade de recur- sos essenciais, nomeadamente contramedidas médicas e não-médicas, para mitigar potenciais disrupções e ameaças”. É o próprio documento que destaca que, ao “reconhecer-se a importância de traduzir estas preocupações em ações concretas, que se impõe a criação de um grupo de trabalho que, aproveitando a experiência e o conhecimento das entidades que integram o consórcio RescEU, desenvolva uma proposta abrangente para a criação, implementação e gestão de uma reserva estratégica nacional de contramedidas, garantindo que o país esteja equipado para enfrentar futuras ameaças com maior eficácia e autonomia”. De acordo com o despacho, “esta reserva, concebida para abastecer as Unidades Locais de Saúde do Serviço Nacional de Saúde em momentos de emergências de saúde e catástrofe, deverá garantir a manutenção de um nível adequado para ativação imediata, salvaguardando assim a capacidade de resposta do sistema de saúde em situações de crise”.Assim, “determina-se o seguinte: 1 - É criado o Grupo de Trabalho no âmbito da implementação de uma reserva estratégia nacional. 2 - É objetivo deste Grupo de Trabalho propor o modelo de governação em alinhamento com as estratégias, orientações e boas-práticas europeias, nomeadamente do RescEU”. Relativamente à composição deste grupo de trabalho, o despacho também é claro sobre quem o integra. “Um representante do Infarmed, I. P., que coordena; um representante da Direção-Geral da Saúde, que cocoordena; um representante do Laboratório Nacional do Medicamento; um representante do INEM, I. P.; um representante do INSA, I. P.; um representante da SPMS - Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E.; um representante do SUCH - Serviço de Utilização Comum dos Hospitais”. Mas o grupo de trabalho é, ainda, constituído por “um representante da Administração Central do Sistema de Saúde, I. P.; um representante da Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, I. P.”. Ou seja, mais uma vez, neste grupo não está incluído o setor farmacêutico, mas o despacho refere no seu ponto 6 que “pode ser solicitada a colaboração de outras entidades públicas, privadas e da sociedade civil, bem como peritos nas áreas que se afigurem necessárias ao desenvolvimento dos trabalhos”, podendo ainda ser “consultadas as autoridades da Região Autónoma dos Açores e da Região Autónoma da Madeira”. O despacho, que não tem data, referia que o “grupo de trabalho deveria apresentar um relatório final com as suas propostas até 16 de maio de 2025”, sendo que o relatório deveria “identificar contramedidas médicas e não-médicas essenciais a integrar na reserva estratégica, bem como da capacidade produtiva ou de abastecimento em território nacional”.Quanto ao modelo de gestão estabelecia que o relatório deveria “definir o modelo de gestão e operacionalização da reserva, incluindo os mecanismos de compra, armazenamento, distribuição e controlo de stocks”, bem como “a elaboração de um plano de contingência para a ativação da reserva em situações de emergência”.Onde está a reserva nacional, que medicamentos inclui e quem a gere?O DN questionou o Infarmed sobre a existência da reserva nacional, que medicamentos a compõem, em que quantidades, para que situações, quem a gere e como é distribuída, mas não obteve uma resposta concreta, tendo-nos sido enviado um comunicado genérico, no qual é afirmado que “têm vindo a ser desenvolvidas ações concretas a nível nacional e europeu”, em articulação com as entidades competentes, para “reforçar a resiliência do sistema de saúde e garantir a disponibilidade atempada de medicamentos essenciais em situações de emergência”.A autoridade do Medicamento justifica-se com a Reserva Estratégica Europeia (rescEU), que “é uma reserva de capacidades europeias para dar resposta a catástrofes, totalmente financiada pela UE, que se encontra repartida por vários Estados-membros e que pode ser acionada a qualquer momento”. Uma justificação que também não convence o bastonário dos farmacêuticos, que argumenta que esta “não é uma reserva nacional”. Na resposta ao DN, o Infarmed refere que “os distribuidores nacionais têm a obrigatoriedade de garantir um stock mínimo de medicamentos para um a dois meses”, estando o setor obrigado a cumprir “regras específicas para garantir a disponibilidade contínua de medicamentos”. Mais uma vez o bastonário explica que “a situação referida aplica-se à gestão dos stocks em caso de rutura. É é isso que o Infarmed tem vindo a fazer nalgumas situações e, mesmo assim, não tem sido possível impedir a rutura de stocks”. O DN questionou o Infarmed sobre o ponto de situação do projeto que Portugal apresentou na sua candidatura à Europa, aprovada a 31 de outubro de 2023, que estimava um prazo de 33 meses para a sua implementação, mas foi-nos dito que iria ser “recolhida mais informação”. As mesmas questões sobre a Reserva Nacional de Medicamentos foram colocadas ao Ministério da Saúde, que indicou o Infarmed para responder, mas, no entanto, avançou que “a reserva estratégica de medicamentos” que o país tem, no “contexto europeu”, “é ativada através do RescEU/Mecanismos Europeu de Proteção Civil” e que o pedido de ativação “cabe à Autoridade Nacional de Proteção Civil”. Na resposta, assume que, “está em preparação um Plano de Preparação e Respostas a Emergência em Saúde Pública, que está a ser elaborado pela DGS - uma comissão constituída em julho por despacho da diretora-Geral de Saúde, despacho n.º 046/2024”. Segundo é explica, “este plano responde a diretivas internacionais e europeias (DGSanté/HERA). Juntamente com este plano será constituída uma nova reserva nacional de medicamentos e dispositivos médicos para emergências em saúde publica”. O DN apurou junto de fonte ligada ao processo que este plano deverá estar concluído em setembro. Farmácias confirmam não saberem da existência de Reserva Nacional de Medicamentos A presidente da Associação Nacional das Farmácias, Ema Paulino, confirmou ao DN também desconhecer a existência de uma Reserva Nacional de Medicamentos. “Confirmo que não temos conhecimento de qualquer reserva nacional. O que temos vindo a acompanhar são as discussões a nível europeu sobre a necessidade de a própria União Europeia se tornar mais independente de forma a não ser afetada quando existem disrupções na cadeia de abastecimento a nível global de medicamentos”. A presidente da ANF afirmou ainda ter conhecimento de que, “em 2023, houve uma candidatura de Portugal a um financiamento europeu precisamente para constituir esta reserva nacional de medicamentos, mas não temos informação sobre o ponto de situação relativamente a este processo”.No entanto, destaca, "o importante é que, de facto, exista uma reserva nacional. E enquanto farmácias comunitárias estamos totalmente disponíveis para participar destas discussões, porque havendo uma reserva nacional de medicamentos os farmacêuticos, particularmente aqueles que estão nas farmácias comunitárias, têm de ter conhecimento sobre o que integra, onde está e como pode ser acionada”.De acordo com o despacho que o Governo tinha preparado, o grupo de trabalho que iria definir a Reserva Estratégica Nacional para a área da Saúde para situações de emergência, envolvendo medicamentos e dispositivos, não integra diretamente representantes do setor farmacêutico, o que é criticado pelo bastonário Hélder Mota Filipe, que se queixa de o setor farmacêutico "estar isolado", pois não integra um plano de contingência da Saúde. "Numa situação de emergência todos os setores devem trabalhar em rede", defende. "A Ordem está de tal forma preocupada com o aviso deixado pelo apagão que vai levar a cabo um curso que vai começar dia 9 de maio para farmacêuticos sobre a prevenção em situações de emergência e catástrofe", conclui.