Quase 40% das pessoas com deficiência vivem com menos do que salário mínimo

Quase 40% das pessoas com deficiência vivem com menos do que salário mínimo

As principais conclusões de um estudo sobre políticas de inclusão dão conta de que quase 63% de pessoas com deficiência inquiridas não têm emprego permanente.
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Quase 40% das pessoas com deficiência inquiridas num estudo sobre políticas de inclusão revelaram viver com rendimentos abaixo do salário mínimo, enquanto 20% depende exclusivamente da Prestação Social para a Inclusão (PSI), fixada em 324,55 euros.

Os dados são do primeiro relatório do Sistema de Indicadores de Políticas de Inclusão – SIPI, coordenado pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa (CIES-Iscte), construído, numa primeira fase, com base nas respostas de 721 pessoas com deficiência.

As principais conclusões dão conta de que quase 63% dos inquiridos não têm emprego permanente, havendo uma taxa de desemprego entre pessoas com deficiência em Portugal que chega aos 12,8%, “mais do dobro da média nacional”.

“As incapacidades motoras e visuais são aquelas em que o valor apurado para o desemprego é ainda superior. Entre os desempregados à procura de emprego, 53,2% detêm habilitações literárias ao nível do ensino secundário, 41,8% têm deficiência motora e 13,2% deficiência visual”, lê-se no relatório, a que a Lusa teve acesso.

O estudo refere, por outro lado, que somando o total da população inativa inquirida neste estudo e que inclui pensionistas, estudantes, pessoas inativas/desencorajadas e domésticas, “a percentagem obtida atinge perto dos 40%”.

“Tal não deixa de ser relevante se se considerar que o painel incidiu apenas sobre a população com deficiência em idade ativa”, alerta.

No que diz respeito às principais fontes de rendimento, no caso de 39,9% dos inquiridos vinham do trabalho, seguido das prestações sociais (36,5%) e de pensão de reforma/invalidez (30,4%), havendo 8,2% de pessoas que afirmaram depender inteiramente da ajuda de terceiros, ou seja, não auferiam qualquer rendimento.

Já sobre o nível de rendimento líquido mensal, “somando os que recebem o valor da PSI com os que auferem até ao montante do salário mínimo, apurou-se um valor de 38,1%”, lê-se no estudo, segundo o qual 20% dos inquiridos depende da PSI, cujo valor mensal é de 324,55 euros.

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Quando questionados sobre se o rendimento que auferem é ou não suficiente para fazer face às despesas, “cerca de um terço (30,7%) refere viver com muitas dificuldades ou que o seu rendimento não chega mesmo para fazer face às despesas”.

Os resultados do estudo mostram que as dificuldades não se cingem à esfera económica e mais de dois terços das pessoas com deficiência inquiridas consideram que o Serviço Nacional de Saúde não está preparado para responder às suas necessidades, apontando falta de formação dos profissionais, escassez de cuidados especializados e dificuldade no acesso a serviços.

“Quase metade diz já ter sido discriminada nos serviços de saúde por tratamento desigual, paternalismo e infantilização ou falta de informação”, aponta.

Em matéria de habitação, a maior parte (50,4%) vive em apartamento na comunidade, mas há também 3,2% que reside num Lar Residencial. Mais de metade (54,3%) aponta que “o acesso à sua habitação não é acessível”.

Sobre acessibilidades, se “mais de 50% consideram que existe somente em alguns equipamentos de saúde, educação, segurança social, finanças, cultura e desportivos”, a percentagem sobe para 64,8% que disseram estar “insatisfeitos a muito insatisfeitos com a acessibilidade a websites/plataformas governamentais e de serviços públicos centrais”.

“No que se refere à acessibilidade física aos transportes públicos, as pessoas com deficiência inquiridas consideram a mesma má ou muito má, revelando um elevado grau de insatisfação, sendo este mais evidente face a autocarros, comboios e metro”, lê-se no estudo.

O relatório deixa algumas recomendações, entre as quais o aumento do valor da PSI, o reforço dos contratos de trabalho apoiado, o alargamento do modelo de assistência pessoal, alertando também para “a necessidade de combater o estigma que continua a limitar o acesso a funções compatíveis com as competências destas pessoas”.

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Sem apoios sociais, mais de 60% das pessoas com deficiência enfrentam risco de pobreza

Estudo nacional revela discriminação generalizada

O estudo demonstra que as pessoas com deficiência são discriminadas “praticamente em todas as áreas”, alertou o coordenador, que sublinhou o estigma que a sociedade ainda demonstra em relação a estas pessoas.

Em entrevista à agência Lusa, José Miguel Nogueira apontou que os inquéritos “demonstram uma vulnerabilidade acrescida das pessoas com deficiência, independentemente dos esforços que têm vindo a ser feitos a nível político nos últimos anos”.

O investigador entende que essa vulnerabilidade está “muito relacionada também com o estigma que a sociedade ainda tem relativamente a estas pessoas”.

“O estudo demonstra uma transversal discriminação praticamente em todas as áreas. Desde a escola, onde muitas vezes os alunos com deficiência são discriminados pelos próprios colegas, (…) mas também por professores e por outros agentes educativos, mas depois também a nível do emprego”, salientou José Miguel Nogueira.

Na educação, o estudo revela que os tipos de discriminação mais frequentes são o gozo/chacota (68%), a agressão ou pressão psicológica (56%), ou exclusão de atividades regulares da turma e/ou visita de estudo (52%).

“Somente 38,1% dos alunos apresentou queixa, mas 75% destes considera que a situação não foi bem resolvida”, lê-se no estudo.

José Miguel Nogueira disse que as acessibilidades são um problema crónico e alertou para a discriminação no acesso ao emprego.

Mesmo quando as pessoas encontram um emprego remunerado, “também se confrontam com situações de discriminação e de preconceito”.

“Esse preconceito muitas vezes tem a ver com aquilo que os colegas pensam, que os colegas dizem, as chefias, hipótese de progressão na carreira, cargos de chefia, etc., em que sentem de facto que existe discriminação”, exemplificou.

Segundo o responsável, a discriminação é também visível no acesso à cultura, desporto ou política e considerou “muito deprimente” que 10% dos inquiridos que revelaram fazer parte de um partido político se queixem da falta de condições para se fazerem ouvir dentro do próprio partido.

Para José Miguel Nogueira, a explicação reside nos “séculos de discriminação relativamente àquilo que é diferente” e que hoje é patente, não só em relação à deficiência, mas sobre outros grupos minoritários e que “são ostracizados em nome de uma determinada normalidade que a sociedade pretende construir ou que certos níveis da sociedade pretendem construir”.

Lembrou há “uma barreira muito grande entre aquilo que é a produção legislativa e aquilo que depois é a implementação e aquilo que as próprias pessoas fazem com essa implementação”, defendendo que “ainda existe uma discriminação grande” que é visível “nas manifestações das pessoas perante as pessoas com deficiência”.

Apesar de entender que o estudo pode ser uma chamada de atenção para o caminho que ainda falta percorrer, recusou a ideia de que não se tenha feito nada, apontando, por exemplo, que Portugal está “no topo das medidas de apoio ao emprego”.

“Eu gostava que estes dados, em primeiro lugar, servissem como um alerta, mas, em segundo lugar, que contribuíssem também para uma reflexão” e para que os decisores políticos pudessem “fazer melhores políticas públicas, políticas mais inclusivas”, defendeu José Miguel Nogueira.

Salientou ainda que “nunca houve nenhuma ditadura das minorias”, - e isso “é matéria de facto” – e que “as pessoas com deficiência são, ao longo da história, a minoria mais discriminada de todas as minorias”.

O SIPI é um projeto-piloto desenvolvido com a parceria do Instituto Nacional de Reabilitação e de mais 30 organismos públicos, 28 organizações não-governamentais com trabalho com pessoas com deficiência e 16 outras entidades setoriais da sociedade.

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