Portugueses dormem mal e correm o risco de ter mais doenças, como AVC, diabetes, obesidade ou cancro
Miguel Marques, de 48 anos, faz parte dos cerca de 46% de portugueses que dormem mal, como revela um estudo da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP). As insónias e as perturbações no sono apareceram-lhe por volta dos 30 anos, sendo que a sua maior dificuldade sempre foi o facto de não conseguir adormecer. Mas também conheceu outras sensações, como o acordar várias vezes durante a noite, ou, pior do que isso, sentir que até dormiu, mas não descansou.
Ao DN, com quem aceitou falar do problema, confessa que durante muito tempo foi “lidando com a situação como podia”. Ou seja, suportando tudo, sobretudo o cansaço - umas vezes melhor, outras pior - , mas acreditando sempre que os horários, o stress e a ansiedade impostos pela profissão que escolheu estariam na origem deste distúrbio e que um dia poderiam atenuar. Mas não.
O cansaço e a exaustão instalaram-se e um dia desabafou em família o que estava a passar. A mãe e a irmã confessaram ter também problemas de insónias, e, tal como ele, dificuldade em adormecer. Na altura, a mãe já fazia medicação com um dos medicamentos mais vendidos em Portugal para resolver a insónia e deu-lhe um para experimentar. Miguel tomou metade, como a mãe, que ainda mantém a mesma dosagem, mas foi assim que iniciou o que hoje sabe ser a dependência de um medicamento.
“Tomei metade de um comprimido e o meu problema começou a resolver-se. Adormecia e quando me levantava de noite voltava para a cama e conseguia adormecer de novo”, conta.
Era um alívio. Mas, ao fim de algum tempo, e sobretudo nos dias em que o turno noturno atirava a chegada a casa já para o início do dia seguinte, o meio comprimido deixou de fazer efeito. “Chegava cheio de adrenalina ainda, às vezes ainda ia jantar, e depois ficava no sofá, sem sono e a saber que daí a umas horas tinha de voltar para o trabalho”, conta.
Passou a tomar um comprimido e decidiu ir ao Centro de Saúde da área da sua residência, no distrito de Setúbal, embora sem médico de família atribuído, para falar sobre o assunto com alguém. “Contei ao médico como tinha começado a tomar e as inquietações que tinha e ele voltou a prescrever-me o medicamento, sem problema”.
Hoje, sempre que termina a caixa de comprimidos volta a pedir a prescrição no Centro de Saúde, mas à medida que o tempo vai passando aumenta também o receio de que o consumo deste tipo de fármaco possa afetar-lhe a Saúde.
“Quando comecei a ter de tomar um comprimido fui informar-me mais sobre a substância e as suas contraindicações. Percebi que está a associada a episódios de amnésia e de outras doenças, mas tirando uma ou duas situações de sonambulismo, relatadas pela minha mulher, não tive mais nada”.
Com um comprimido à noite, Miguel adormece e descansa, embora nem sempre seja assim. “Há noites em que não consigo dormir”, relata. Mas, ao fim destes seis anos, gostava de encontrar uma solução para o seu problema sem ter de tomar diariamente um comprimido.
Usar medicação para resolver a insónia nem sempre é o mais adequado
Paula Pinto, coordenadora da Unidade do Sono e Ventilação Não Invasiva (VNI), do Hospital Santa Maria, diz que há outras soluções para resolver as perturbações do sono, que a automedicação é um erro e que as substâncias mais prescritas, como as benzodiazepinas, nem sequer são as mais indicadas.
Aliás, para a médica especialista nesta área e professora na Faculdade de Medicina de Lisboa, “a primeira prescrição para tratar insónias e outras perturbações do sono deveria ser, desde logo, a instituição de medidas de higiene do sono”, sublinhando que “grande parte das insónias apenas requer como tratamento uma ‘Terapia Cognitivo-Comportamental’”.
Ou seja, medidas que mudem os hábitos”. Para a especialista, o grande problema dos portugueses é “não valorizarem o sono”, e deviam. “O sono tem de entrar na agenda dos portugueses. É preciso uma educação para o sono, porque dormir bem é lucrativo para a Saúde”.
Paula Pinto explica ao DN que casos como o de Miguel, que começou a resolver o problema com automedicação, não é o mais correto nem sequer é dos casos que mais aparecem na consulta que coordena. Pelo contrário, “aparecem cada vez menos, porque as pessoas também se vão informando sobre as situações e sobre os efeitos deste tipo de medicação”, mas reconhece que a literacia sobre o sono ainda não é suficiente no nosso país.
Aliás, diz, “os números recolhidos em vários estudos refletem exatamente isso, colocando-nos perante um problema de saúde pública”. No entanto, reconhece, “não somos os únicos. Há outros povos que sofrem do mesmo, mas, no nosso caso, acredito que tenha a ver com uma questão cultural”, argumenta.
“Vivemos numa sociedade que exige que estejamos permanentemente ativos, sete dias por semana, 24 horas ao dia, a responder a emails, a mensagens, e a sermos produtivos. Se não estamos a ser produtivos, temos de nos divertir ”, explica, acrescentando: “Temos muito a cultura noturna, tal como os espanhóis, ou outros povos do Sul da Europa; jantamos tarde, os bares estão abertos até mais tarde, e parece que temos de viver tudo naquele momento. E a que vamos retirar tempo? Ao sono”.
Na sua opinião, este comportamento está enraizado na nossa sociedade, fazendo com que os portugueses “ainda encarem o sono como um pilar fundamental para a Saúde, como já fazemos como a nutrição ou com o exercício físico”. Ou seja, reforça a médica, “o sono tem de fazer parte da agenda dos porgtugueses, tem de ser encarado como uma necessidade fisiológica: ‘eu tenho de comer, eu tenho de beber água, eu tenho de dormir’. Porque o dormir bem é lucrativo e o dormir mal tem as suas consequências”.
Dormir bem reduz stress oxidativo e retardar envelhecimento
Paula Pinto relembra que é através do sono que restauramos a parte imunológica e que “o dormir bem reduz o stress oxidativo, a inflamação do organismo, retarda o envelhecimento, melhora a memória e a concentração”. Mas, ao mesmo tempo, alerta para as consequências do dormir mal: “Aumenta o risco para as doenças cardiovasculares, como AVC (Acidentes Vasculares Cerebrais), hipertensão, enfartes, arritmias, ou para o risco de desenvolver diabetes, obesidade, depressões, ansiedade e até alguns tipos de cancro”. Consequências que estão explanadas na literacia médica e que dão conta também que “quem não dorme tem mais propensão para desenvolver infeções por micro-organismos”.
Portanto, a especialista volta a sublinhar, “dormir bem é lucrativo”, mas, para tal, é necessário que desde cedo a população perceba que, tal como a higiene física, tem de haver também uma higiene para o sono. “Tem de haver rotinas. Deitar à mesma hora e levantar à mesma hora, embora possa haver mais ou menos uma meia hora de diferença. O mesmo deve acontecer ao fim de semana, porque dormir mais horas nestes dias só significa que houve privação do sono durante a semana”.
Mas não só. Segundo a médica, uma boa higiene do sono dita também que este ocorra “num ambiente tranquilo, num quarto fresco, a cerca de 18 a 20 graus, completamente escuro, sem ruído, sem luzes ou equipamento eletrónico, como telemóveis, televisões ou computadores. E isto porque a luz que estes equipamentos emitem vai inibir a produção de melatonina, que é a hormona que induz ao sono”. Mais: antes de dormir também “não devemos comer uma refeição pesada, porque senão ficamos enfartados, mas também não devemos comer pouco, senão ficamos com fome, e isso vai tirar-nos o sono”.
A professora da Faculdade de Medicina, também membro da direção da Associação Portuguesa do Sono, recomenda que “o próprio exercício físico não deve ser feito três a quatro horas antes de dormir, mas sim durante as manhãs, privilegiando o sol”. Assim, o organismo sabe o que é para o dia e o que é para a noite. O pior erro é quando se enche as noites com as atividades do dia, como o trabalho. “A pessoa que chega a casa pelas 20.00 e depois vai para o computador e continua a trabalhar até às duas, três, quatro da manhã, trabalhou tanto à noite como de dia, e não descansou. Isto não é saudável”, sublinha.
Apesar do retrato que vários estudos fazem do sono dos portugueses, Paula Pinto concorda que já há algum trabalho a ser feito em termos de educação para o sono, nomeadamente pela APS e pelas próprias Unidade Locais de Saúde, quer através da formação dos próprios profissionais de saúde, médicos, enfermeiros, psicólogos, quer através de projetos piloto no terreno que promovem medidas que não sejam só a prescrição da medicação, mas também outras que levem à mudança de hábitos.
Mas este trabalho está a ser também levado às escolas - “temos tido professores e diretores de turma a pedirem-nos para falarmos do tema e darmos conselhos” - e às empresas, para “ajudarmos os trabalhadores a dormirem melhor, quem dorme bem tem maior produtividade”.
Paula Pinto considera que esta cadeia de medidas de higiene para o sono “é contagiante no bom sentido”, já que pode chegar a muitas pessoas. “Pode começar com formação na escola, mas pode passar para a família e até para amigos. Aliás, é a única coisa em que o contágio é bom”, sublinha.
Ressona? Tem paragens respiratórias? Não negligencie os sintomas
Há pessoas que associam o sono a situações traumáticas e que resistem a dormir, há pessoas que pelo stress e ansiedade associados à vida profissional têm insónias, mas também há pessoas que sofrem de patologias do sono, como “apneia obstrutiva”. E estas têm de ser tratadas.
“Há pessoas que têm perturbações mais graves do sono, que nunca tinham sido identificadas. Por exemplo, em Portugal estima-se que haja uma prevalência de cerca de 17% da apneia de sono, sendo que esta afeta mais os homens do que as mulheres - 49% dos homens tem apneia de sono moderada a grave e 23% das mulheres. Estamos quase a par da obesidade, e esta já é considerada uma pandemia”, destaca a médica. E quem tem sintomas como “ressonar ou paragens de respiração não os deve negligenciar”.
A percentagem de portugueses que dorme mal é preocupante e a especialista em sono Paula Pinto espera que neste dia mundial a mensagem seja ouvida: “Faça do sono uma prioridade”.
O retrato dos estudos e dos números
1 - 46% dos portugueses com idade igual ou superior a 25 anos dormem menos de seis horas por dia, 21% dizem que demoram mais de 30 minutos a adormecer e 32% consideram ter um mau sono, revela um estudo da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.
2 - 40% dos portugueses reportam dificuldade em manter-se acordados durante a condução e outras atividades diárias. Um estudo recente da Prevenção Rodoviária Portuguesa revela mesmo que a fadiga e a sonolência ao volante são responsáveis por 30% dos acidentes, havendo 9,4% dos condutores que admitiram ter adormecido ao volante. Alguns (40,8%) tentam enganar o cansaço com o abrir das janelas ou ligando o ar condicionado, outros (34,3%) aumentando o volume do rádio e 28,9% consumindo cafeína.
3 - Em 2022, Portugal registava o segundo maior consumo do mundo de fármacos para as insónias. Este dado consta de um relatório do Conselho Internacional para o Controlo de Narcóticos (INCB) e refere-se ao medicamento Zolpidem, um fármaco hipnótico, do grupo das imidazopiridinas, indicado para o tratamento de curta duração da insónia em adultos que têm dificuldade para adormecer. Segundo o mesmo relatório, o consumo deste fármaco aumentou em toda a Europa, sendo que os maiores aumentos foram observados em cidades de Portugal, Espanha e Itália.
4 - As Insónias nas crianças também têm vindo a aumentar nos últimos anos, alerta a Associação Portuguesa de Sono. Não há estudos nem números concretos que reflitam esta realidade, mas a associação diz que há mais pais a procurar ajuda por este motivo. A APS recomenda aos pais que procurem aconselhamento médico antes de recorrer a suplementos de indução do sono como se fossem milagrosos.