O avanço tecnológico na Medicina é quase garantia de que o futuro dos sistemas de saúde também será feito no caminho da inovação, mas há um mas. É que qualquer inovação só acontecerá se for aceite pelos possíveis utilizadores. Como diz Marta Entradas, investigadora do ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa, que coordenou um estudo de opinião na área da digitalização na saúde e bancos de dados, “sem a confiança dos utilizadores, mesmo tecnologias com potencial para melhorar o acesso e a qualidade dos cuidados não serão aceites”. Para a investigadora, os resultados obtidos “não surpreendem muito”, mas revelam a falta de informação por parte das próprias entidades que tentam encetar esta inovação. E tudo começa porque o utente, aquele que pode partilhar os seus dados, “tem de estar bem informado sobre o que implica esta partilha, quem armazena os dados e que garantias têm de privacidade e de segurança no seu tratamento”, alerta a investigadora. Portanto, “há um grande trabalho a fazer por parte das entidades da saúde, mas também das empresas tecnológicas e outras que tenham bancos de dados para que a inovação aconteça”, alerta. Segundo o estudo de opinião agora levado a cabo, sobre Partilha de dados e Blockchain, financiado por fundos nacionais do PRR, a maioria dos portugueses demonstra confiança nos “serviços digitais do setor público, quando se trata de gerir dados de saúde - 82% confiam nos médicos e 76% nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) - mas só 27% acreditam que empresas tecnológicas, como a Microsoft ou a Apple, oferecem segurança no tratamento destes, havendo 41% que assumiram abertamente a sua desconfiança relativamente a esta matéria. “Sem saber onde estão os dados, quem lhes acede e com que finalidade, as pessoas retraem-se na partilha de informação e na aceitação do seu uso”, reforça Marta Entradas. Acrescentando: “Nos dias de hoje, e com os esquemas de fraude que existem através de dados pessoais armazenados em bancos de dados, a proteção destes é a principal preocupação dos cidadãos até na área da saúde digital.” Aliás, destaca, este ponto foi mais valorizado do que a “transparência”. Ou seja, oito em cada dez portugueses (81%) referiram estar preocupados com a falta de responsabilidade das instituições e 80% com a falta de clareza no uso da informação. Outros riscos apontados foram ainda a exclusão social digital, apontada por 77%, sobretudo pessoas mais velhas, falhas técnicas, também por 77% , e desconhecimento legal sobre os direitos dos cidadãos, 76%.Ao DN, Marta Entradas volta a reforçar que se há algo que o estudo veio demonstrar foi que “não basta falar em inovação, é preciso garantir segurança e explicar claramente os mecanismos, sob pena de afastar quem mais precisa destes serviços”. E exemplifica: “47% dos portugueses já aceitam receber no telemóvel receitas ou resultados de exames, mas a predisposição para partilhar informação mais sensível ainda é limitada.” Ou seja, 63% aceita fornecer dados básicos como idade ou sexo, 59% dados sobre estilos de vida, 51% mostram-se disponíveis para partilhar resultados clínicos e 45% informação genética. Mas há outro tema nesta matéria muito sensível, a venda de dados pessoais e clínicos a entidades de saúde ou a bancos de dados, até para estudos. “A comercialização de dados é amplamente rejeitada”, refere a investigadora, sendo que “52% discordam em absoluto”. O que pode também significar que “a Saúde não é vista como um negócio. Não é o ganho monetário que importa, mas o que é seu, o dado pessoal, que não se vende. Há aqui também uma certa sensação de controlo”, argumenta Marta Entradas. Contudo, há que referir que um em cada três inquiridos venderia os seus dados, se a sua identidade não fosse revelada. Outro dado interessante tem a ver com o facto de a maioria dos inquiridos ter referido que já aceita receber informação do sistema de saúde no telemóvel ou no email, mas que o mesmo não acontece com atos médicos, por exemplo a aceitação de teleconsultas é ainda muito reduzida. Marta Entradas explica que nesta situação ainda estão muito presentes “o fator de proximidade e a confiança interpessoal e institucional”, e não a mais valia que pode trazer a tecnologia, até em termos de acesso aos cuidados.Portugueses confiam nos médicos e nos organismos da Saúde O estudo avaliou ainda a confiança nas fontes de informação em saúde. E os profissionais mais valorizados foram os médicos, com 91% dos portugueses a assumirem ter “muita” ou “alguma” confiança neles. As instituições nacionais, como a Direção-Geral da Saúde ou o SNS, recolhem 80% de confiança, seguidas das organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde com 73%. Em contrapartida, 46% dos inquiridos afirmou nunca ou quase nunca recorrer a plataformas como o Facebook ou o Instagram para obter informação sobre saúde. A classe política é o grupo em que menos confiam. A investigadora argumenta que “as pessoas confiam nos médicos e nos hospitais, não em algoritmos ou tecnologias, em que as vantagens são abstratas”. Por isto, reforça que uma das prioridades para as empresas no ramo dos bancos de dados ou tecnológicas deve ser “reforçar os mecanismos de proteção e comunicar de forma transparente com os cidadãos, porque sem confiança não há saúde digital”.