Frente ao Atlântico, na vertente sul da Serra da Arrábida, o Sanatório Marítimo do Outão inscreve-se na história da medicina portuguesa. Fundado em 1900, representou um avanço notável na abordagem da tuberculose - a “peste branca” que devastou a Europa durante mais de um século. Ali, o tratamento era inseparável do ambiente: ar puro, luz, repouso e alimentação equilibrada faziam parte da terapêutica. Em O Sanatório da Tuberculose (Outão 1900-1950), uma edição By The Book, o médico ortopedista e investigador Rogério Palma-Rodrigues reconstrói a génese, a monumentalidade e o quotidiano clínico de uma instituição que foi “modelo de humanismo e ciência”. O livro reconstrói a evolução desta instituição e o seu papel no combate à doença. Fá-lo sobre a memória de um espaço onde se ensaiaram práticas médicas pioneiras e se espelhou uma das mais longas batalhas da saúde pública em Portugal.Todas as obras trazem um propósito. No seu caso, o que determinou a escrita deste livro?Propus-me resgatar e registar memórias que, nestes nossos tempos, correm sérios riscos de se perderem. Também porque a história desse edifício acastelado, não obstante ser exemplar, permanecia obscura, tantas foram as funcionalidades que desempenhou ao longo dos tempos. Achei que devia ser dada uma unidade e um outro entendimento através da revelação do valor histórico que os sanatórios assumiram no tratamento da pandemia de tuberculose. A verdade nua e crua da doença que aí era tratada, no fim do século XIX e princípio do século XX, bem como as carências de recursos locais e nacionais desse tempo, tinham de ser relatadas, a par dos fatores naturais favoráveis, relacionados com o clima, que constituíram a base do tratamento durante 100 anos. Metade desse tempo, entre 1900 e 1950, Portugal teve, de entre as poucas armas de que dispunha, uma peça preciosa do armamentário antituberculoso: o Sanatório Marítimo de Outão, cuja história me pareceu imperativo ser contada, até como paradigma dos múltiplos sanatórios nessa era erigidos na Europa.O seu livro é também a história da sua experiência pessoal no lugar que Fialho de Almeida definiu como “a mais bela coisa de Setúbal”. Que memórias guarda das décadas ligadas ao Hospital Ortopédico do Outão?Desempenhei funções clínicas e de direção durante quatro décadas, até 2015, e considero um privilégio ter participado na vida da instituição que tão valiosos serviços prestou enquanto Sanatório e ainda hoje presta aos doentes do foro ortopédico. A feliz circunstância de eu ser um filho adotivo de Setúbal e ter escolhido a especialidade de Ortopedia determinou a opção de terminar o Internato Complementar no Hospital Central Ortopédico de Outão, onde comecei a trabalhar em 1977. A instituição era dirigida por Jacques Resina, o seu último diretor enquan- to sanatório e criador, na década de 1960, do Método Português de tratamento cirúrgico de deformidades da coluna vertebral. Logo após Abril de 1974, um escol de novos especialistas reforçou o exíguo quadro médico. Ficaram criadas muito boas condições para a formação pós-graduada dos médicos internos, o que dinamizou a vida hospitalar num tempo de fulgor da Saúde em Portugal, mercê da criação do Serviço Nacional de Saúde em 1979.O livro trata de duas realidades que se entrecruzam, o sanatório e a tuberculose, a “peste branca” que grassou no século XIX e XX. Centremo-nos na tuberculose. Quer, sucintamente, fazer-nos um quadro desta doença e do impacto que teve na Europa e em Portugal?A epidemia de tuberculose tem as suas razões fundas nas drásticas alterações sociais do século XVIII, depois da Primeira Revolução Industrial. O abandono dos campos e o crescimento anárquico das urbes colocaram as pessoas em precárias condições de existência, criando o meio propício à ação do bacilo de Koch, hospedeiro do corpo humano em estado de letargia. Foram, portanto, as péssimas condições de vida que propiciaram a pandemia que, na Europa, durou mais de um século, propagando-se depois a outros continentes, onde persistiu e é ainda a doença infecciosa mais mortífera a nível mundial. A tuberculose é uma doença de multidões, com origem social. O combate pressupunha a melhoria das condições de vida e medidas políticas e económicas muito antes da construção dos sanatórios, cuja necessidade não se questionava, mas era cara. Antes da construção de sanatórios impunha-se sanear o meio ambiente, visão que nem todos os países europeus tiveram - a exceção foi a Inglaterra, a “Pátria da Higiene”, nas palavras de Ricardo Jorge. A Inglaterra procedeu a reformas económicas e sociais que lhe permitiram apresentar, no Congresso Internacional sobre Tuberculose de 1901, uma quebra de 40% na mortalidade pela doença, ao tempo também designada “peste branca”. Em Portugal, não obstante a mortalidade ser na ordem dos 15 a 20 mil óbitos por ano, o atraso era muito grande: só em 1899 se fundaram a Liga Nacional Contra a Tuberculose e a Assistência Nacional aos Tuberculosos (ANT), sendo erigidos sob a sua égide os sanatórios de Outão, para raparigas, em 1900, e o de Carcavelos em 1902, para rapazes, ambos sanatórios marítimos. A Liga tinha predominantemente as funções de propaganda, doutrinação e esclarecimento sobre a doença, a fim de a população se autoproteger adotando cuidados profiláticos e criando hábitos de vida conforme as suas poucas disponibilidades económicas permitissem. À ANT competia tratar os já doentes ou em alto risco de adoecerem, valendo-se para isso dos seus sanatórios. A medicina portuguesa foi acompanhando sempre, ao menos em teoria, a evolução ocorrida nos países mais desenvolvidos; o mesmo se não podia dizer da economia e da política, nas mãos da monarquia decadente dos fins do século XIX..Ao longo do período que aborda dá-se uma evolução no sentido de combater a doença no nosso país. Quais são os momentos que elencaria como decisivos nessa luta?Conhecia-se a causa da doença desde 1882 e sabia-se que era contagiosa. Impunha-se tomar medidas profiláticas, ensinadas às populações pela Liga Nacional Contra a Tuberculose. Evitavam-se contágios internando em Preventórios as crianças com progenitores tuberculosos. Finalmente havia o sanatório para tratar e isolar os doentes, oferecendo-lhes condições salutares de existência. Outro acontecimento decisivo foi a descoberta dos antibacilares, com a estreptomicina em 1943, que tornou possível atacar o bacilo de Koch e pensar na cura. Respondendo à pergunta, cito duas datas que mudaram o olhar sobre a doença: 1882, quando foi identificada a bactéria responsável pela infeção, e 1943, quando foi descoberto o primeiro antibiótico eficaz. Entre elas decorreu um longo período de mais de seis décadas em que os povos estiveram expostos à ação terrível do micróbio sem armas para contra ele lutarem.Há uma história associada ao Sanatório de Outão antes de servir como instituição hospitalar. Uma história que se liga à cidade de Setúbal. Quer evocar essa história em breves palavras?O porto de Setúbal, grande e aberto, estava mal defendido contra Ares, deus da guerra, e contra Apolo, deus das epidemias. Cabia ao forte do Outão, alinhado com outras fortificações da Arrábida, defenderem o lugarejo de piratas e também das doenças contagiosas trazidas pelos tripulantes dos navios que comerciavam com o mundo. Desde sempre, as ameaças para os habitantes de Setúbal vieram do mar, e a Torre gótica joanina do século XIV era sentinela que avisava e defendia a população, praticamente sem muralhas para se abrigar. Essa luz do farol era vista com respeito e gratidão pelos pescadores. Já em tempos de sanatório, o distanciamento era benéfico: garantia a pureza dos ares tão necessários a doentes muito fragilizados, longe da poluição da cidade industrial.Num quadro complexo como era o de tratar e debelar a tuberculose, os sanatórios surgem, como escreve, “qual ilha salvadora fora do inóspito meio social”. No caso concreto, também escreve que o Sanatório de Outão é um caso paradigmático na luta contra a doença. Porquê?O meio social e familiar era muito pobre, sujo, inabitável, logo agressivo, e possuía todas as condições propícias à disseminação da tuberculose em populações fragilizadas e subnutridas. Para essa doença não havia, ao tempo, remédio que não fosse eliminar aquelas condições precárias de vida e aceder a uma situação de conforto, higiene e bem-estar. Furtavam-se a este destino alguns mais afortunados, retirados desse meio infeto para condições salutares oferecidas pelos preventórios e sanatórios, e os eleitos eram as crianças. A grande maioria dos doentes do Sanatório Marítimo de Outão eram crianças e jovens, com média de idades em torno dos 11 anos, que sofriam de tuberculose da coluna (Mal de Pott) ou dos gânglios linfáticos do pescoço (escrofulose)..Encontrou no Sanatório de Outão um arquivo eloquente, embora “esquecido”. Em que estado está este arquivo e o que de importante nos reserva?Penso que a riqueza dos arquivos e o manancial de dados que contêm não são suficientemente aproveitados para investigação clínica. Os dados registados são habitualmente manuseados apenas quando têm utilidade prática imediata. Exceção feita à revisão de casos tratados e resultados obtidos, em geral para relatórios ou comunicações científicas, as pesquisas raramente recuam no tempo, como seria necessário em estudos de natureza histórica. Reconheça-se, porque é verdade, que no afã do dia a dia os médicos não dispõem de tempo para a investigação e publicação de resultados.O sanatório também foi um espaço de inovação no tratamento. Gostaria de o ouvir a este propósito.Na época pré-cirúrgica havia grande uniformidade no tratamento dito ortopédico, inspirado no que se fazia na Europa desenvolvida, particularmente no sanatório francês de Berck-sur-Mer e na estância alpina da Suíça, em Leysin. No Sanatório Marítimo de Outão olhava-se para os dois métodos e não se rejeitava qualquer medida terapêutica que parecesse adequada e benéfica. Depois da década de 1940, já na fase operatória do tratamento da tuberculose osteoarticular, as técnicas cirúrgicas ganharam novo fôlego graças ao saber e engenho de Jacques Resina, profundo conhecedor da cirurgia das lesões ósseas tuberculosas. O seu saber foi notoriamente favorecido com a descoberta dos medicamentos antibacilares.Dos muitos documentos que lhe passaram pelas mãos relacionados com a condição dos doentes internados no sanatório, algum lhe tocou particularmente na sua condição de médico e de ser humano?Os dramas da separação sentida pelas crianças. O desvelo de quem as tratava minorava, mas não supria a ausência da família, sempre longa, de meses ou anos. Algumas cartas são pungentes. A esse sofrimento emocional acrescia o do adolescente que devia decidir sobre ser ou não ser operado. Pedia consentimento à mãe, que vivia a centenas de quilómetros e lhe respondia por carta: “Pedes-me autorização para fazer a operação, pois meu querido filho deves calcular que eu não te vou contrariar… Filho, tu és a única pessoa que deve decidir.” Era verdadeira, a voz de uma mãe sensata e cheia de dúvidas, incapaz de dar conselhos sobre questão tão complexa - e ele, ainda um menino de 13 anos, muito menos sabia.Nas décadas estudadas no livro foram internadas no Sanatório 691 crianças com idades até 4 anos, entre muitas outras na verde idade. Que condições encontravam estes jovens?Infâncias e adolescências perdidas, muitos fizeram-se homens, mas “nunca foram meninos”, como escreveu Soeiro Pereira Gomes. Contudo, a doença, particularmente o Mal de Pott, tinha nas crianças pequenas um curso evolutivo mais benigno e melhor prognóstico, frequentemente compatível com um internamento de curta duração. Quando a mãe tinha condições domiciliárias adequadas, podia continuar o tratamento em casa. A comunicação com o sanatório e com o médico estava sempre garantida, para seguimento da doença, esclarecimento de dúvidas ou eventual convocação para observação..Rogério Palma-RodriguesÉ licenciado em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Coimbra (1970). Cumpriu o internato nos Hospitais Civis de Lisboa e serviu como médico militar em Moçambique (1972-74), onde contactou com doenças infetocontagiosas como tuberculose e lepra. Especialista em Ortopedia, iniciou funções no Hospital Central Ortopédico de Outão, que dirigiu entre 1995 e 2006. Foi chefe de serviço, diretor do Departamento do Aparelho Locomotor do Centro Hospitalar de Setúbal e coordenador da Unidade de Escolioses Jacques Resina. Mestre em Gestão de Serviços de Saúde pelo ISCTE, integrou os órgãos dirigentes da Ordem dos Médicos. É autor de O Sanatório da Tuberculose (Outão 1900-1950). .Lisboa e Vale do Tejo é a região com mais casos de tuberculose