Portugal sem resposta para vítimas de terrorismo
Diretiva obriga a indemnização de vítimas de crimes violentos no território da UE. Lei portuguesa é omissa quanto a atentados no resto do mundo e até o apoio não financeiro falha. Família de portuguesa morta na Tunísia fala em "revolta" e "abandono"
"Recebi um telegrama do PR no dia do enterro. Foi tudo o que houve de interesse das autoridades portuguesas." Mariana Sousa Moreira, 48 anos, perdeu a mãe, Glória Moreira, de 76, a 26 de Junho de 2015 no massacre de Sousse, na Tunísia. Na altura, não quis falar com os media. 10 meses depois, esta tradutora técnica freelancer residente no Brasil veio a Portugal tratar de vários assuntos, muitos relacionados com o sucedido. A revolta e mágoa levam-na a quebrar o silêncio: "Não senti qualquer tipo de apoio. Ninguém me ligou a perguntar se precisava de alguma coisa. Apoio psicológico, uma baixa por incapacidade para o trabalho, nada." Muito menos foi sugerida a hipótese de qualquer indemnização: ao contrário de países como o Reino Unido e a França (ver texto nestas páginas), que preveem compensações para nacionais vítimas de atentados terroristas em qualquer parte do mundo, Portugal só compensa, por via de uma lei de 2009, vítimas de crimes violentos em território nacional e em aeronaves ou embarcações portuguesas. E parece não ter previstos quaisquer mecanismos de enquadramento das vítimas de terrorismo (que na legislação europeia e nos manuais de boas práticas incluem os familiares e amigos dos mortos e feridos nessas circunstâncias). Apesar de por exemplo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima se ter desde 2014 disponibilizado, junto do Apoio Consular de Emergência, para acompanhar pessoas nessas circunstâncias.
"Não sei sequer como morreu"
Ao longo da conversa, Mariana sustém a dor na voz de dicção impecável. Mesmo quando confessa que no dia anterior estava num café na Foz quando ao ouvir passar uma ambulância começou a chorar. "Liguei ao meu marido e contei-lhe. Ainda não estou bem passado este tempo todo." Suspira. "Estou perdida. Sou filha única numa família pequena. Há tanta coisa para tratar de que nem suspeitava."
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A seguir à morte da mãe, esteve dois meses sem conseguir trabalhar e está a fazer terapia - a suas expensas - desde então. Mas nunca, em nenhuma altura, os serviços do Estado, nomeadamente o apoio consular, que contactou na altura, lhe indicaram a existência de serviços gratuitos de apoio a vítimas, como é o caso do providenciado pela APAV, que tem um grupo especializado no atendimento de vítimas de terrorismo e publicou em 2013 um manual específico sobre o assunto. É através do DN que Mariana ouve pela primeira vez falar da associação e desse atendimento especializado, providenciado a qualquer pessoa, mesmo residente no estrangeiro (através de skype por exemplo) e que não se limita a apoio psicológico, incluindo informação sobre direitos e procedimentos e assistência jurídica.
Auxilio que lhe fez muita falta desde junho de 2015. "Ainda nem recebi o subsídio de funeral, porque houve um enorme atraso no envio da certidão de óbito. O meu marido fartou-se de ligar para a embaixada, que atribuía a demora às autoridades tunisinas. Na funerária disseram-me que se calhar já não mo darão, por causa dos prazos. Que se atrevam".
Aliás, há muita coisa que Mariana não recebeu. O relatório da autópsia, por exemplo; informação sobre as circunstâncias da morte da mãe. "Se calhar as pessoas não percebem, mas era muito importante para mim saber se ela morreu logo, se sofreu, onde estava quando aquilo aconteceu. Não sei nada". O único contacto que teve com as autoridades judiciárias portuguesas ocorreu quando a chamaram para lhe fazerem um questionário em que lhe perguntavam tudo o que ela queria saber. "Foi uma senhora, muito simpática, que se via que estava aflita com a situação. Perguntou-me como morreu a minha mãe. E terminou com uma pergunta fabulosa: "Em quanto avalia a morte dela?" Fiquei incrédula: "Está-me a perguntar como se avalia morte de uma mãe?" E foi o Luís [marido de Mariana, empresário] que disse um valor qualquer. Até hoje ninguém me explicou para que foi aquilo. Já pensei mandar uma carta à PGR a pedir informação."
Lei de terrorismo não fala de vítimas
O DN procurou, junto da PGR, obter informação sobre os procedimentos neste tipo de casos, mas não foi possível, segundo a respetiva assessoria de imprensa, encontrar alguém para a prestar no espaço de tempo (dois dias) de elaboração deste trabalho. Ainda assim, a PGR chama a atenção para o facto de não existir na legislação portuguesa que estabelece os termos do combate ao terrorismo (Lei 52/2003 de 22 de agosto) qualquer disposição relativa às vítimas, pelo que considera que tal deve ser nela aditado.
Na falta disso, aplica-se a lei 130/2015, de 4 de setembro (aprovada já após o atentado de Sousse), a do Estatuto da Vítima, que prevê "o princípio da informação, segundo o qual "o Estado assegura à vítima a prestação de informação adequada à tutela dos seus direitos"", incluindo "quais os requisitos que regem o seu direito a indemnização", "gratuitidade da consulta jurídica e, se necessário, o subsequente apoio judiciário", assim como sobre "o tipo de serviços ou de organizações a que pode dirigir-se para obter apoio e o tipo de apoio que pode receber."
Tudo aquilo que não aconteceu com Mariana Sousa Moreira. E que, frisa Bruno Brito, gestor da rede de apoio a familiares e amigos de vítimas de homicídio na APAV, teria sido muito fácil acionar. "Bastava que nos tivessem avisado da situação ou que falassem à senhora da nossa existência. Aliás, queremos contratualizar com o ministério dos Negócios Estrangeiros o apoio a vítimas e porventura o mesmo tipo de resposta que existe no MNE britânico: lá quando há uma situação de homicídio ou feridos graves o Apoio à Vítima vai com as autoridades consulares ao local. É muito importante essa coordenação para que a APAV possa intervir. Fizemos esta semana um contacto nesse sentido com a Secretaria de Estado das Comunidades." O caso de Maria Sousa Moreira, com quem este técnico falará na sequência da conversa com o DN, impressiona-o: "No mínimo dos mínimos aquilo que devia ter sido feito era perguntar como as pessoas estão e que necessidades têm, incluindo apoio psicológico na altura e, eventualmente, continuado, e apoio jurídico para saberem quais os seus direitos."
"Ninguém atendia telefone de emergência"
Mas as falhas do Estado português no caso de Glória Moreira iniciaram-se no dia do atentado, uma sexta-feira, ainda antes de se saber o que lhe tinha acontecido. "Foi a minha sogra que ligou a dizer que tinha havido um tiroteio. Comecei a ligar para o telemóvel da minha mãe, e tocava, tocava, ninguém atendia. Não ficámos logo preocupados, porém: achámos que ela podia tê-lo deixado no quarto, por causa do roaming. Quando recebi o aparelho, tinha 106 chamadas não atendidas. Mas as horas passaram, percebemos que aquilo tinha mesmo acontecido no hotel onde ela estava, o Riu Imperial Marhaba, e aí começámos a ficar aflitos, sobretudo porque ela não ligava a dizer que estava bem. Deram-nos um telefone de emergência na embaixada de Portugal na Tunísia que era suposto ter sempre alguém a atender. Mas o certo é que ninguém atendia. Disseram-nos mais tarde que ficara esquecido na embaixada."
Mariana tem um riso amargo na voz. "Estávamos a ver a CNN e reparámos no nome de um hospital tunisino numa das ambulâncias. Descobrimos o número do hospital na net e ligámos para saber se a minha mãe estava lá. Disseram-nos que não. Ligámos para os outros hospitais na zona e nada. Fomo-nos deitar às duas da manhã sem saber ainda nada, e tínhamos avião no dia seguinte muito cedo para Paris [entre os clientes de Mariana conta-se a OCDE, com sede na capital francesa]. Levantámo-nos às quatro e foi quando o Luís conseguiu falar para o hotel. Foi o hotel que nos confirmou que a minha mãe era uma das vítimas mortais." E foi Mariana que informou o Estado português que a mãe era uma das pessoas mortas em Sousse. A primeira vítima portuguesa do Daesh, que viria a reivindicar o atentado. "Não se deram sequer ao trabalho de perceber o que se passava com a minha mãe. Eles estavam na Tunísia e fomos nós que nos mexemos. Recebemos uma conta incrível de telefone."
Mais apoio do Reino Unido que de cá
Mariana e o marido voaram para a Tunísia na segunda-feira seguinte, para testes de ADN e reconhecimento do cadáver. "Podiam ter-me poupado a isso. Houve ingleses que se recusaram. Mas disseram-nos que não libertavam o corpo se não o reconhecêssemos presencialmente. Felizmente só me mostraram a cara, o resto estava tapado. Perguntaram-me foi se queria o fato de banho que ela trazia vestido."
O alheamento do Governo português pareceu-lhe ainda mais chocante ante o que viu da Tunísia da parte do Reino Unido. Face ao elevado número de vítimas nacionais (30 mortos), os britânicos enviaram para Sousse uma delegação que incluía polícia, médicos legistas, psicólogos e o subsecretário de Estado Tobias Ellwood. "A dada altura ele falou comigo", conta Mariana, "e disse-me que sabia o que eu estava a sentir. Pensei: "Sabes lá tu." Mas ele explicou-me que o irmão tinha sido morto nos atentados de Bali."
Foi através da embaixada britânica na Tunísia que a portuguesa soube da existência de um grupo fechado no Facebook que reunia as vítimas e os familiares das vítimas de Sousse. E aceitaram-na. "A dada altura as autoridades britânicas perguntaram se as pessoas queriam que se organizasse uma cerimónia de homenagem, e foi marcada para 12 de abril na Abadia de Westminster. Para minha grande surpresa, fui convidada. E pediram-me desculpa por não me poderem pagar as passagens de avião." Faz um silêncio breve antes da frase seguinte. "A delicadeza de me dizerem isto. É tão triste sentir que há mais sensibilidade em relação a mim de um governo estrangeiro que no meu, do meu país."
E as perguntas surgem. "No Reino Unido fazem uma espécie de um julgamento em relação a atos terroristas. São ouvidas testemunhas, apresentadas provas. E há indemnizações. E em Portugal?" Mariana, que conseguiu receber metade do seguro que a mãe fizera ao comprar a viagem - "Era de 15 mil euros mas a agência disse que não cobria atos terroristas. Por especial favor pagaram 7500" - nunca tinha ouvido falar da lei nacional que determina a compensação a vítimas de crimes violentos nos casos em que os perpetradores não possam indemnizar ou não sejam descobertos. Nem sabia da diretiva europeia que prevê que essas compensações existam quando os atentados ou crimes ocorram no espaço da UE. "Talvez devesse haver uma alteração da lei", conclui. "Não é muito justo, pois não? Para mim se calhar já não virá a tempo, mas que ao menos este exemplo sirva para as pessoas porem os pés na terra. Que se perceba que é preciso fazer alguma coisa."
José Luís Carneiro, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas desde novembro, nada sabe do caso de Glória Moreira. As perguntas sobre o que correu mal desde o início no contacto com a embaixada de Portugal na Tunísia ficam pois sem resposta - para já. "É o gabinete de emergência consular que tem a responsabilidade de fazer a articulação entre os postos consulares e autoridades locais e as famílias de potenciais vítimas. Tem de estar em linha direta com todos. E há um plano de contingência para cada consulado. Além de uma diretiva de abril de 2015 que prevê auxílio entre países da UE nestes casos." Admite porém que há muito a melhorar. "Por um lado há falta de meios, mesmo o gabinete de emergência só tem quatro pessoas. E a rede consular foi muito diminuída nos últimos anos. Por outro lado temos de trabalhar na abordagem multidisciplinar." A abordagem multidisciplinar referida terá a ver com o recurso a serviços como o disponibilizado pela APAV, cuja proposta de colaboração com o serviço de emergência José Luís Carneiro diz não lhe ter ainda chegado.