Vanessa G. tem 42 anos, nasceu em Luanda, vive no Porto há quase duas décadas. Está cansada. “Dizem-nos muitas vezes que com trabalho e esforço chega-se lá. Não, não chega. É mentira. Se com trabalho e esforço se chegasse lá, tínhamos uma vida boa, as minhas filhas e eu. Mas, na verdade, trabalho horas e horas para ser pobre”, diz ao DN em voz baixa, mas firme. Em 2023, havia em Portugal 9.2% de trabalhadores pobres, quase o dobro do objetivo traçado na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, fixado em 5%. A realidade nacional é dura: mesmo com uma elevada participação no mercado de trabalho, uma família pode viver numa situação de pobreza. O país mantém um risco de pobreza superior à média europeia, sendo o 9º estado, dos 27, com maior taxa de trabalhadores pobres. Olhando para grupos específicos, o cenário é ainda pior. Por exemplo, 22,1% é o valor da taxa de pobreza nas famílias monoparentais, o que nos coloca no 6º lugar do ranking da UE. Vanessa G. trabalha em restauração. É cozinheira. Dias que começam às seis da manhã e terminam, com frequência, às 11 da noite não lhe dão hipótese de ter um segundo emprego. Mãe de duas gémeas de 16 anos, aposta agora em “alguma segurança”. Mas o que ganha “serve exclusivamente para as despesas de casa”. .Recorda os anos recentes em que se desmultiplicava por mais do que um trabalho e por duas crianças gémeas. “É um desgaste brutal, física e psicologicamente. Fiz limpezas, tomei conta de crianças, servi em casas particulares. Houve alturas em que trabalhava em três patroas ao mesmo tempo”. . Conta, de rajada: “Coitadas das minhas mãos. A direita está ainda mais gasta. Mexe em produtos abrasivos, permanentemente entre a água quente e a fria. Dói-me bastante. Por causa dos apoios sociais, na escola e nos transportes das meninas gasto menos. Mas e o resto? Dos 900 euros mensais de salário que ganho, 500 euros vão para a renda da casa. 300 para a alimentação. E a água e a luz? Ando sempre a fazer contas e são muitas as vezes em que, a meio do mês, já não consigo chegar às coisas essenciais. Fora as outras. Por exemplo, preciso muito trocar os óculos, mas como? Só a consulta são 45 euros. Então, a pessoa diz: ‘vou deixar para depois’. Os dentes? O mesmo. E assim sucessivamente”. Vanessa continua: “É um jogo, sabe. Um jogo muito duro, e o mais certo é não o ganhar. Por vezes pergunto qual será a minha missão na Terra. Claro, sei bem que devemos agradecer o pouco que temos, mas revolta, são 40 anos. Queria um bocadinho de alívio”. .No movimento perpétuo do dia a dia, no sobe que sobe a calçada, Vanessa G. tem pouco tempo para pensar. “Mas fazendo uma reflexão, comovo-me. Porque isto é mau, muito mau”. Mesmo assim guarda “uma réstia de esperança”. Luta há 17 anos por uma licenciatura, objetivo sempre adiado por falta de dinheiro para pagar a faculdade. “Nunca consegui pagar esse desejo. Finalmente, graças a um trabalho um pouco menos precário, vou conseguir”. Com a ajuda de uma bolsa, Vanessa G. está prestes a terminar a licenciatura em Serviço Social. “Os dados dizem-nos que a pobreza entre trabalhadores tem diminuído, mas temos ainda valores muito altos em contexto europeu”, diz Elisabete Santos, investigadora do Observatório Nacional de Luta contra a Pobreza e coordenadora da Unidade de Observatórios e de Investigação da Rede Europeia Anti- Pobreza-Portugal (EAPN). “Para trabalhadores por conta de outrem a taxa é um pouco mais baixa, mas para os restantes é de 28 por cento, ou seja: um em cada quatro desses trabalhadores é pobre”, acrescenta a investigadora. Ao lado, Maria José Vicente, diretora executiva da Rede Europeia Anti Pobreza (EAPN) lembra a importância de um combate ao flagelo “cada vez mais integrado e multidimensional, envolvendo todos os ministérios e não centralizado em um único ministério ou num reduzido número de ministérios” e a necessidade de “um modelo económico que priorize o bem-estar social e a igualdade de oportunidades”. Em Portugal, acrescenta, “assistimos a uma rara oportunidade de aliar a recuperação económica com a erradicação da pobreza, porque simultaneamente ao Plano de Recuperação e Resiliência assistimos à aprovação da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (2021- 2030) e os recursos oriundos do primeiro devem estar alinhados com a Estratégia, para que a realidade económica seja cada vez mais inclusiva com políticas públicas que promovam uma maior dignidade humana”. .Insónias, dores de estômago e como pagar a águaMaria Azevedo nasceu no Porto, vive em Lisboa. É artista e professora. Tem 55 anos. É mãe de dois rapazes, de 21 e 12 anos. .“Com esta idade, a insegurança é terrível. Faz muito mal à saúde e já nem falo da parte psicológica. Durmo 5, 6 horas por noite, acordo muitas vezes de madrugada, ansiosa, com dores de estômago, a pensar como pagar as contas. Já me cortaram a água”, diz. .Quando olhamos para a população pobre, e consideramos apenas a faixa etária que maioritariamente está inserida no mercado de trabalho (18-64 anos), verifica-se que quase metade está inserida nesse mercado (49.3%), sendo que 33% são trabalhadores por conta de outrem. Proporções superiores às dos inativos (25.4%), dos desempregados (21.5%) ou dos reformados (3.2%). “Comparando com 2022, aumentou a proporção dos trabalhadores na população pobre (dos 18 aos 64 anos), ainda que o risco de pobreza entre os trabalhadores pobres tenha diminuído ligeiramente (passou de 10 para 9.2%)”, diz Elisabete Santos, considerando estarmos perante “uma evolução importante e provavelmente associada ao processo de aumento do salário mínimo a que temos assistido”.. No entanto, a responsável pelo Observatório sublinha a subida da pobreza registada em alguns grupos: “Além das famílias monoparentais, verificou-se um aumento entre os trabalhadores por conta própria, nos trabalhadores com ensino superior e entre os estrangeiros (18.8%), nomeadamente extracomunitários (20%)”. A taxa de pobreza é particularmente elevada nas situações de maior precaridade laboral, atingindo, entre trabalhadores por conta própria e empresários em nome individual, os 28%. “Dou aulas por módulos. Posso ficar seis meses sem dar aulas. Na escola sou paga a 25 euros por hora. Não é dinheiro fixo. Escrevo como freelancer para o cinema. Faço trabalhos de atelier, em artes plásticas, mas agora não se vende nada. Trabalho sábados e domingos. Aceito tarefas que noutras alturas declinaria: palestras, workshops, pego em tudo. Já faltou mais para ter de fazer croquetes”, relata Maria. Sente na pele que trabalha “horas e horas para nada”.As economias, resultado de uma pequena herança, vão-se dia após dia. Nunca pôde levar o filho mais novo a um restaurante. Há um ano, conseguiu pela primeira vez uma semana de férias em família. “Fomos os dois a Barcelona, porque uma amiga minha tem lá casa". Cerca de 70% cento do que ganha vai para a hipoteca da casa. O resto vai para a alimentação. “Os dois rapazes varrem o frigorifico”. Pede dinheiro emprestado mais vezes do que alguma vez pensou. “Já tentei renegociar a dívida ao banco, mas como tenho trabalhos precários, o banco não aceita. Depois do divórcio fiquei com tudo em cima”. Maria José Vicente, diretora executiva da Rede Europeia Anti Pobreza (EAPN) pede a redução da disparidade de género e mais combate à pobreza feminina: “Incentivar adoção plena das medidas de conciliação entre vida profissional e familiar por via da criação de incentivos às empresas cujos setores de atividade manifestam maior dificuldade em adotar estas medidas. Criar mecanismos de reconhecimento e valorização de empresas que garantem um maior equilíbrio de género na promoção de carreira e com reflexo nos cargos de direção e de chefia." Defende “uma estrutura fiscal mais justa, com maior tributação para empresas transacionais, além de maior controle para evitar perdas por conta de evasão fiscal". Lembra “a necessidade de se olhar para o envelhecimento como uma questão de sustentabilidade da economia nacional”. A dirigente considera que a longevidade “providencia possibilidades ao mercado de trabalho e à economia, mas requer também medidas de apoio que permitam aos cidadãos uma contribuição ativa para a sociedade durante a sua vida ativa”. .Ler o passado na palma da mão Portugal é o 3º país da UE com maior taxa de trabalhadores por conta própria pobres e com maior taxa de trabalhadores a tempo parcial pobres. Carla T. conhece a realidade do mercado de trabalho como as palmas das mãos. Mãos queimadas, com calos antigos. Tem 52 anos e, finalmente, “uma vida boa”. Mas dos 11 aos 47 foi um rosário de “dores”. “Fui sempre escrava do trabalho. Nasci pobre, sempre me disseram que assim é que era, e eu não conhecia outra vida”. Trabalhou em calçado. No final das oito horas de trabalho, limpava a fábrica “por mais uns tostões”. Chegava a casa às oito da noite. “Fazia o jantar para a minha filha, rissóis, bolos e passava a ferro para fora”. E mesmo assim não chegava. “O meu ordenado fixo, na fábrica de calçado, era de 625 euros. Por fora, ganhava cerca de 400 euros. Vivi e formei a minha filha com 1000 euros por mês”. A bolsa de mérito da jovem, com mestrado em Gestão, “só existia no papel”. E do Estado, ao longo dos anos de formação, recebeu “um Magalhães”. Hoje, aos 52 anos, Carla lê o passado na palma da mão. “Mãos doridas, tenho muitas mazelas, nunca tive mimos”. Diz-nos que foi escrava do trabalho, do casamento, dos pais. Que conheceu outra vida só depois do divórcio. “O que mais me custou foi dar de caras com a realidade que desconhecia, a realidade cá fora. Ainda hoje o sinto no vocabulário. Há palavras que não sabia escrever, porque nunca as tinha lido ou ouvido”. Hoje orgulha-se de “um companheiro culto que me ajuda a aprender e do afeto de uma família que me deu autoestima”. A funcionária do El Corte Inglés recorda os anos recentes em que se levantava às 6.30 da manhã e se deitava à meia-noite. 7 dias por semana. “De quando em quando, ia um bocadinho ao café ou levar a minha filha a Braga, onde estava a estudar. Até aos 48 anos, foi assim a minha vida. Passeios à Póvoa do Varzim ou excursões de mulheres a Fátima, de longe a longe". Aos 11 anos tinha a quarta classe. Com as Novas Oportunidades fez o primeiro ciclo. Quando há cinco anos ficou desempregada, completou o nono ano e um curso de geriatria. Para Maria José Vicente, a aposta nas qualificações é um elemento central. “Gerações mais qualificadas estão mais protegidas do risco de pobreza, acrescentando valor à própria economia. Empregadores e empregados mais qualificados criam as condições ideais para um crescimento económico mais sustentado e, desejavelmente, uma menor desigualdade de rendimentos”. Mas será suficiente? “É necessária uma remuneração justa e condições de trabalho dignas: a política de baixos salários não permite aos jovens trabalhadores terem uma vida digna”.A gestora denuncia “horários desregulados, contratos a prazo, sujeitos à exploração e ao assédio” que não permitem fazer planos para o futuro e têm fortes impactos na conciliação entre a vida familiar e profissional. .Acrescenta: “Num momento de transição como o que estamos a viver, onde as economias estão a passar por duas transições - a verde e a digital -, são necessários investimentos em educação e formação que visem a preparação de mão de obra para as novas oportunidades que irão surgir”. . Carla T. e Vanessa G. fizeram parte do Click, um projeto desenvolvido por acordo de cooperação entre a EAPN Portugal e o Instituto do Emprego e Formação Profissional, que trabalha as áreas da empregabilidade de públicos vulneráveis e da responsabilidade social das empresas. Criado em 2014 como projeto piloto, foi desenvolvido pela EAPN na região de Águeda. 2015 foi o ano de alargamento a outros territórios e grupos, e 2016 o de focalização de públicos-alvo e de reforço da ligação com potenciais entidades empregadoras. Em 2022, o Projeto Click estendeu a intervenção a 4 territórios: Vila Nova de Gaia, Porto, Maia e Valongo, pretendendo chegar assim a um total de 80 pessoas, a meta mais ambiciosa desde a sua implementação. Para 2025, está prevista a presença do Projeto Click nos territórios de Paredes, Vila Nova de Gaia e Vila Real, destinado a um máximo de 80 participantes. 40 + 40 horas de trabalho semanal. Sem dificuldades, mas também sem alma Quando olhamos para o risco de pobreza, olhamos especificamente sobre os rendimentos, ficando invisível o impacto do aumento do custo de vida, nomeadamente o da habitação, nos rendimentos dos agregados. Isso significa que, apesar do aumento de rendimentos do trabalho e da redução da taxa de pobreza, tal não significa que, sobretudo entre os trabalhadores que estão sujeitos aos aumentos do custo de habitação, não haja um agravamento das condições reais de vida. Os números dizem isso mesmo. Comparando o aumento do salário mínimo nacional, de +7.8% (705 para 760 euros) em 2022-2023, +7.9%, em 2023-2024 e +6.1%, em 2024-2025, com o aumento dos novos contratos de arrendamento, de 10.6%, em 2022-2023 e 10.5%, em 2023-2024, percebe-se que os primeiros são engolidos pelo aumento do preço das rendas. L. A. é professor a tempo parcial. Pai de três crianças, de dois e meio, 12 e 16 anos. Trabalha quarenta horas por semana na escola. O rendimento que daí recebe vai inteiro para a renda da casa. Precisa, depois, de mais quarenta horas em outros trabalhos. Ou seja, 16 horas de trabalho diário caso fosse uma semana normal. Não pode ser: L. A. também trabalha aos sábados e domingos. Nas horas de almoço. Nos intervalos das aulas. “Tanto esforço serve exclusivamente para que o dinheiro não seja uma preocupação constante, mas falta-me depois a qualidade de vida”, diz ao DN. Olha para a família e tem uma certeza: “Sei que não posso morrer. Por isso, comecei a cuidar mais de mim porque eles precisam muito de um pai vivo e com saúde para trabalhar”. .Quanto ao trabalho no século XXI, “foi-se a alma, estamos todos a fazer coisas automáticas. É uma angústia. Desempenhamos uma tarefa, mas não entregamos nada à sociedade. O trabalho não traz dignidade, porque se limita a ser um modo de sobrevivência”, diz o professor. . “A pobreza traduz uma grande injustiça social, mas traduz também um claro obstáculo ao crescimento económico. Tal como a OCDE assinala, em contextos de desigualdade de rendimentos e de oportunidades, a falta de mobilidade ascendente para a população com menores rendimentos significa que vários talentos são desperdiçados, perdem-se oportunidades de investimento e o potencial económico é subdesenvolvido”, recorda-nos Maria José Vicente. .Três em cada cinco portugueses diz não ter dinheiro para as necessidades básicas